Usos e mal usos da palavra “energia”

por Ademir Xavier.

 

“É uma perda de energia enervar­-se com alguém que se comporte mal, assim como com um carro que não ande.” Bertrand Russel.

Se a física é a ciência que trata da estrutura íntima da matéria, a energia (do grego antigo νέργεια: energeia ou “atividade”, “operação”) é a quantidade física de menor semelhança com qualquer coisa sólida ou material que se possa imaginar. Por isso mesmo, ela tem sido utilizada de forma inapropriada por grandes grupos de espiritualistas (de várias vertentes, cultos, crenças e nacionalidades) em suas narrativas de fenômenos ou eventos de natureza ‘espiritual’, ou mesmo fatos corriqueiros sem qualquer significado transcendente. Falase em ‘energias espirituais’, ‘energias curativas’ ou ‘curas energéticas’. Existe ainda as ‘energias positivas e negativas’ e por ai vai.

Nosso objetivo aqui não é criticar o uso desta palavra nesses contextos, mas esclarecer o significado de ‘energia’ que é utilizado em muitas disciplinas acadêmicas como a física, química e biologia. De fato, não somente entre espiritualistas (veja a frase de B. Russel acima), a palavra ‘energia’ recebe acepções muito diferentes para muitos grupos, sendo talvez o exemplo mais contundente de polissemia que se pode dar. Nosso objetivo aqui é resgatar o sentido original dessa palavra.

O que é energia? Todos temos algum contato com algum tipo de processo ou sistema que faz uso de energia. Na vida moderna, televisores, computadores, telefones celulares, carros etc são exemplos de equipamentos que, para funcionarem, precisam de energia. Sabemos que, se não forem supridos com ela, seu funcionamento é paralisado. Também nossos corpos precisam de energia. A privação do alimento leva à inanição e mesmo à morte. Mas, todos sabemos que, para funcionar, tais equipamentos e mesmo nossos corpos não são ‘alimentados’ com nada ‘sutil’, ‘invisível’ ou imponderável. Sabemos que, para funcionar, um carro precisa de combustível que se apresenta na forma líquida, na maior parte das condições climáticas que habitamos. Para continuarmos vivendo ingerimos alimentos, na forma sólida ou líquida, nada aparentemente sutil pelo menos no que diz respeito ao quanto tais coisas podem sensibilizar nossos sentidos.

Energia em física, química e biologia, é um termo essencialmente técnico que se refere a algo imponderável (não podemos ‘captar’ ou perceber a energia com nossos 5 sentidos), mas que pode ser medido. Tratase de uma medida de capacidade ou propensidade de um sistema ou processo em realizar trabalho. Energia e trabalho são termos irmãos. O termo ‘trabalho’ ordinariamente é utilizada com significado totalmente diferente. Falamos em ‘hoje não vou trabalhar’ para se referir à atividade ou meio de produção a que me dedico diariamente. Entretanto ‘trabalho’ no sentido dado pela física é uma medida de variação de energia de um sistema.

Energia podese apresentar nas formas mais variadas: falase em energia nuclear (quando trabalho é extraído do interior do núcleo atômico), energia química (quando trabalho é extraído da eletrosfera dos átomos), energia luminosa (quando luz pode ser usada para produzir trabalho), energia elétrica (quando cargas em movimento realizam trabalho), energia hidroelétrica (quando trabalho pode ser extraído da vazão e queda de grandes volumes de água através de geradores elétricos), energia potencial (quando a capacidade de um sistema em produzir trabalho está armazenada de forma potencial, isto é, não ‘cinética’), energia térmica (quando trabalho pode ser extraído do movimento de moléculas) etc. Mais importante do que compreender que existem diversos tipos de energia é saber que a ela está associada um valor que as fazem todas equivalerem entre si quantitativamente.

Por causa disso, falase em transformar ‘energia elétrica’ em ‘energia cinética’ (em motores elétricos) ou viceversa (em geradores elétricos), em transformar energia química em eletricidade (em baterias elétricas) ou viceversa (quando se ‘carregam’ as baterias) e assim por diante. Até hoje ainda não se conseguiu encontrar nenhum sistema para o qual a lei de ‘conservação de energia’ não possa ser aplicada. Uma vez gerada, energia não pode ser destruída, embora uma fração da energia presente em um sistema físico (qualquer que seja ele) se perde de forma irreversível, fazendo com que não possamos extraír toda a energia potencial associada a esse sistema. Isso dá origem ao termo ‘eficiência’ (uma porcentagem) que mede o trabalho máximo que se pode produzir por um sistema que é sempre menor do que o disponíbilizado por sua fonte energética. Por exemplo, baterias solares tem eficiência de 14%, o que significa que apenas 14% da energia solar é convertida em eletricidade nessas baterias.

De qualquer forma, energia não se refere a ‘algo’ que exista concretamente, que se possa ver ou tocar (o que é diferente do ‘Espírito’ que é algo que existe embora de forma ‘incorpórea’). Quando sentimos o calor na proximidades de uma chapa quente, não estamos ‘sentindo energia térmica’. Há uma certa quantidade de energia armazenada na chapa (a uma temperatura acima da ambiente) que é transferida para as moléculas em torno da chapa. Essas moléculas (de ar) adquirem velocidades superiores às velocidades médias das moléculas que estão à temperatura ambiente. Nossa pele tem ‘células’ capazes de sentir a colisão dessas moléculas mais rápidas, o que que se manifesta em nós como uma sensação do calor.

Do ponto de vista semântico, assim, a palavra ‘energia’ não se refere, na física, biologia ou química, a nada que possa ver ou tocar. Desta forma, luz não é ‘energia’, tecnicamente falando, pois a luz é considerada um tipo de radiação ou movimento de ondas de natureza definida pela teoria física. Entretanto, talvez por não se referir a algo ponderável, o termo adquiriu outra conotação quando caiu no gosto popular. Assim, é comum ouvir-se que ‘luz é um tipo de energia’.

Energia tornou-se um dos termos mais polissêmicos na atualidade, por representar uma ‘novidade’ que confere atualização ou modernidade para a linguagem de muitos movimentos espiritualistas, mas que não tem nenhuma relação com sua acepção original. Colocado dessa maneira, seu uso não representa endosso das várias disciplinas acadêmicas para as novas formas de ‘energia’ que se está a propor.

Referências Para saber mais sobre polissemias veja A. P. Chagas,’Polissemias no Espiritismo’. Revista Internacionalde Espiritismo, setembro de 1996, pp.247-49.


Desde o começo de 2011, Ademir tem se dedicado a escrever artigos regulares para os blogs:

eradoespirito.blogspot.com e spiritistknowledge.blogspot.com (em inglês).

Ele também participou dos últimos dois Enlihpes no CCDPE-ECM, sendo que um dos artigos escritos para o evento foi publicado em livro e aborda uma proposta de medida experimental para fenômenos de efeitos físicos. Além disso, fez contribuições para a revista ‘Paranthropology’ (paranthropologyjournal.weebly.com, vol 2, nº 1, p47), onde discute aspectos linguísticos das comunicações particulares através de Chico Xavier, usando teoria da linguagem.

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Fonte: Acesso ao artigo: Boletim GEAE 545, 31/10/2011

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