por Cesar Boschetti.
Cuidado!
Medite com muita calma e mente aberta sobre a frase em epígrafe. Muito ao contrário de demérito, ela indica a maior virtude da Doutrina, além de testemunhar a grandeza de espírito de Allan Kardec.
A humilde intenção deste artigo é tentar levantar uma pontinha do véu que cobre a imensidão desconhecida do Universo espiritual, palco de nossa jornada evolutiva. Jornada que teve um começo, mas não terá um fim. Não somos eternos como só Deus o é, mas somos cocriadores infinitos dentro da infinita obra Divina. Nada está acabado. Tudo se encontra sob permanente transformação, conforme leis Divinas inacessíveis ao nosso limitado intelecto. Essa é a divina beleza do Eterno. A infinita beleza do Universo. A suprema virtude da evolução.
A caridade, o amor e a grandeza de uma fé raciocinada, que não se fecha em si mesma, não existiriam sem o lastro dessas virtudes maiores.
O caminho da evolução não é uma pista única com espíritos em fila, caminhando em direção ao infinito. São infinitos caminhos, magistralmente exemplificados por Jesus, como as muitas moradas na casa do Pai.
Não devemos tomar o Espiritismo como guia único nessa jornada. O verdadeiro guia é o amor, presente em todas as doutrinas que buscam a edificação do ser humano. Mas a nós, espíritas, compete falarmos do Espiritismo, sem pretensão de sermos donos da verdade, mas seguindo o exemplo de humildade e fraternidade, pregadas por Jesus. Até porque, como dizia Herculano Pires, o espiritismo é o grande desconhecido dos próprios espíritas [1].
Este é o tom desta narrativa. Queremos motivar o leitor a refletir sobre alguns pontos importantes da Doutrina. Uma reflexão crítica, amparada no puro desejo de saber e compreender cada vez melhor — O que de fato somos? De onde viemos? E para onde vamos?
Comecemos nossa modesta excursão pelo Universo Espírita, examinando exatamente essas questões. Para onde vamos ao nos despojarmos do nosso corpo carnal? Será que vamos para o Umbral descrito por André Luiz em “Nosso Lar”? Será que vamos para alguma colônia espiritual? Será que simplesmente caímos na erraticidade? Ou será que vamos em missão para algum outro planeta? Que sensações experimentaremos ao nos libertarmos de nossa vestimenta de carne e osso? Nos veremos como éramos em vida? Teremos consciência do nosso desencarne? Sentiremos ter um corpo? Perceberemos a passagem do tempo? Ouviremos sons e perceberemos vibrações acústicas em um novo ambiente? Respiraremos ar e perceberemos aromas? Nos veremos sós ou sentiremos a presença de outros seres semelhantes a nós? Nos sentiremos tranquilos e acolhidos por uma atmosfera de amor? Ou nos sentiremos rejeitados, deprimidos e na mais absoluta e gélida solidão?
Não sei. Só sei que nada sei, parafraseando um antigo sábio. O leitor, eventualmente, pode acreditar saber para onde vai. Isso é algo de foro íntimo de cada um. Mas cuidado com a fé cega em opiniões alheias ou em suas próprias crenças mal examinadas. O exame crítico isento e a fé raciocinada são os melhores guias.
Encarecemos ao leitor o exercício da paciência. Nossa excursão, apesar de modesta, inevitavelmente, será longa.
Nosso ponto de partida é o fato de que, na codificação, Kardec não falou em colônias espirituais nem em umbral. Mas também não fez nenhuma restrição proibindo essas possibilidades. Vejamos as considerações de Kardec sobre a situação do espírito desencarnado. Em termos gerais, de acordo com o vocabulário espírita [2], no intervalo entre encarnações sucessivas, o espírito encontra-se na erraticidade. O que não quer dizer estados de inferioridade. Na erraticidade existem espíritos de todas as classes, exceto espíritos puros que já não precisam mais se reencarnar e, portanto, não podem ser considerados errantes.
Vejamos alguns detalhes interessantes. Na questão 226 do LE [3], tratando da erraticidade, Kardec acrescentou na quinta edição do LE um parágrafo muito interessante no comentário dessa questão (grifos meus):
“Entre os Espíritos não encarnados, há aqueles que têm missões a cumprir, que se entregam a ocupações ativas, gozando de relativa felicidade. Outros como que flutuam no vazio e na incerteza; são estes os errantes, na acepção própria do termo, constituindo, na realidade, o que se designa pela expressão, almas a penar. Os primeiros nem sempre se consideram errantes, porque fazem uma distinção entre sua situação e a dos outros. (1015.) (Este último parágrafo é parte da Errata da 5ª edição, de 1865.)”. Veja a referência [4].
Essa consideração abre as possibilidades para a situação do espírito desencarnado. Isso fica mais claro ainda no seguinte trecho do ESE [5] (grifos meus):
“Independentemente da diversidade dos mundos, essas palavras de Jesus (muitas moradas) também podem referir-se ao estado venturoso ou desgraçado do Espírito na erraticidade. Conforme se ache este mais ou menos depurado e desprendido dos laços materiais, variarão ao infinito o meio em que ele se encontre, o aspecto das coisas, as sensações que experimente, as percepções que tenha. Enquanto uns não se podem afastar da esfera onde viveram, outros se elevam e percorrem o espaço e os mundos; …”
Observe que Kardec conferiu grande amplitude ao estado dos espíritos na erraticidade, sem, contudo, fechar a questão em cima de alguma situação particular. Isso, creio eu, explica a não referência a colônias espirituais e ao umbral pois, a princípio, seriam situações subjetivas. Preferiu, ao que tudo indica, deixar essa questão em aberto para futuras investigações. Kardec certamente não ignorava a ideia de cidades espirituais. Vemos isso na obra de Emmanuel Swedenborg (1688 – 1772), muito bem conhecida por Kardec que, apesar de ressalvas, considerava Swedenborg um dos precursores do espiritismo, como mostra artigo da RE de novembro de 1859 [6]. Swedenborg foi o primeiro a mencionar as cidades espirituais sob uma perspectiva mais próxima da vida material, isto é, dando a entender uma continuidade do plano material no plano espiritual, e não como um símbolo ou lugar especial para seres especiais, como eram as ideias mais antigas. Em sua obra “Heaven and Hell” encontramos o trecho abaixo em tradução livre [7]:
“184. Mas é melhor apresentar os ensinos da experiência. Todas as vezes que falei com os anjos face a face, eu estava com eles em seus habitáculos. Seus habitáculos são inteiramente como na terra, as habitações que se chamam casas, contudo são mais belas. Nelas há um grande número de salas, gabinetes e quartos de dormir; há pátios e, ao redor, jardins, canteiros e prados. Onde os anjos foram reunidos, os prédios são contíguos, um perto do outro, dispostos em forma de cidade, com praças, ruas e mercados, absolutamente à semelhança das cidades em nosso mundo. Foi-me permitido percorrê-las, examiná-las em todos os sentidos e, às vezes, entrar nas casas. Isso se deu em plena vigília, quando minha vista interior tinha sido aberta”.
Kardec levava muito a sério o seu critério do “consenso universal do ensino dos espíritos”. De acordo com referência [5] do ESE, vemos que a visão de Swedenborg não era descabida, talvez um pouco exagerada, mas não descabida. Mas era uma visão particular. Por isso a codificação não mostra nenhum argumento explícito contrário ou a favor da existência de colônias espirituais. Kardec, em lugar de apoiar opiniões isoladas, preferiu deixar a questão em aberto, até porque, do contrário, ele teria que descer a detalhes e explicações que o desviaria do objetivo principal, a saber, os princípios fundamentais da codificação.
Entretanto, o movimento espírita brasileiro não é homogêneo. Muitos espíritas entendem que a ausência de menção direta às colônias espirituais na codificação, é um argumento suficiente para negar essa possibilidade. Com todo respeito aos que pensam assim, isso não me parece estar de acordo com a lógica e racionalidade esposada por Kardec que era muito positivo em suas colocações. Esses opositores costumam invocar também a questão 1012 do LE. Lá encontramos a seguinte pergunta:
“Q. 1012: Haverá no universo, lugares circunscritos para as penas e gozos dos Espíritos, segundo seu merecimento”?
Ao que os espíritos respondem (grifos meus):
“Já respondemos a essa pergunta. As penas e os gozos são inerentes ao grau de perfeição dos Espíritos. Cada um tira de si mesmo o princípio de sua felicidade ou de sua desgraça. E como eles estão por toda parte, nenhum lugar circunscrito ou fechado existe especialmente destinado a uma ou outra coisa. Quanto aos encarnados, esses são mais ou menos felizes ou desgraçados, conforme seja mais ou menos adiantado o mundo em que habitam.”
É claro que não existem lugares circunscritos especiais como o céu ou o inferno bíblicos, para o gozo eterno dos bons ou as penas eternas dos maus. Em nossas considerações anteriores já foi apontado no ESE e na errata da 5.a edição do LE a subjetividade da situação na qual os espíritos se vêm. Para eles, a situação em que se vêm é uma realidade. Isso precisa ser respeitado. Negar ao espírito em evolução, encarnado ou na erraticidade, a sensação de sentir-se preso a uma determinada situação desagradável, como o umbral, por exemplo, ou acolhido e protegido por uma outra determinada situação agradável, como uma colônia, por exemplo, não me parece racional nem expressão de amor.
Lugares aprazíveis com campos floridos similares aos mencionados em Nosso Lar, também são recorrentes em experiências de quase morte [8], corroborando o fato de que a realidade do espírito, desdobrado ou desencarnado, não é uma realidade universal, mas é a realidade subjetiva do espírito ou de um coletivo de espíritos simpáticos entre si.
No meu entender Kardec foi muito sábio e racional. Não apoiou nem negou a possibilidade, deixando a questão em aberto para futuras investigações. Investigações que, infelizmente, foram menosprezadas. Voltaremos a esse ponto mais adiante.
De qualquer modo a polêmica existe, não é de hoje e também não tem data marcada para terminar. Existe inclusive teses acadêmicas em torno do assunto [9], bem como extensa literatura a respeito [10].
Mas não é nosso objetivo nos envolvermos nessa polêmica. Ela não é de todo ruim. Revela dinamismo e diversidade de opiniões própria de uma doutrina aberta, não dogmática. Contudo, também não deixa de ter seu lado negativo por estabelecer o dissenso e afastar o diálogo. Nosso propósito, de forma modesta e isenta, dentro do nosso alcance, é mostrar que Kardec nos legou uma doutrina científica e filosófica com consequências morais extremamente bela, avançada e profunda. E como toda doutrina de caráter científico e filosófico, não deve ficar congelada no tempo. Kardec deixou claro que o espiritismo deveria caminhar ao lado do conhecimento humano. No parágrafo final do item 55 da Gênese [11], lemos o seguinte:
“Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”.
Embora essa fala de Kardec seja uma das mais citadas, há outras colocações que demandam uma profunda reflexão de nossa parte. No item anterior da referência acima, Kardec coloca o seguinte no final do item (grifos meus):
“… Por outro lado, dispondo todo Espírito, como todo homem, apenas de limitada soma de conhecimentos, não estavam eles aptos, individualmente, a tratar ex professo das inúmeras questões que o Espiritismo envolve. Essa ainda uma razão por que, em cumprimento dos desígnios do Criador, não podia a doutrina ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium. Tinha que emergir da coletividade dos trabalhos, comprovados uns pelos outros.” [12]
Kardec está se referindo ao consenso universal do ensino dos espíritos, cuja importância é detalhadamente explicada na introdução do ESE [13] e também na RE [14]. Se bem compreendido, a importância e as condições nas quais ocorreu esse controle nos anos 50 e 60 do século XIX, cabe-nos perguntar se seria possível o mesmo controle em 1927 quando Chico Xavier iniciou sua atividade mediúnica?
Quando Kardec recebia as comunicações de centros ao redor do mundo todo por cartas, ele tinha a garantia de que os médiuns não se conheciam, permitindo-lhe coletar, comparar, confrontar, correlacionar e, por fim, consolidar os princípios gerais da doutrina. O senso crítico e exame racional eram os critérios fundamentais de Kardec, que permitiam-no certificar-se do caráter do espírito comunicante e do teor moral da mensagem. Nessa época já havia o telégrafo, mas muito longe de permitir a comunicação mais abrangente de um grande número de pessoas.
Um sistema de comunicação de massa só começou a se tornar realidade nos anos 20 do século XX com a popularização do rádio e do cinema. Neste novo contexto, a garantia de que os médiuns não tinham nenhum conhecimento entre si e as comunicações dos espíritos ficavam restritas a um pequeno grupo de pessoas, torna-se mais complexa, dificultando o controle universal nos moldes realizado por Kardec nos anos 50 e 60 do século XIX.
Essa reflexão é de suma importância. Nos impulsiona ou, pelo menos, deveria nos impulsionar a buscar outras formas de exercer controle sobre as comunicações dos médiuns e dos espíritos comunicantes. Perceba, não se trata de colocar em dúvida o caráter do médium e do espírito comunicante. Sabemos que, independentemente da seriedade, o exercício da mediunidade está sujeito a falhas e os espíritos não sabem tudo e, de boa-fé, podem cometer enganos. Kardec deixa isso muito claro nas referências [13 e 14] acima. Por isso é importante o crivo da razão e a fé raciocinada.
Os princípios basilares da doutrina estão postos. Eles demandaram da parte de Kardec, cuidados muito especiais quanto à validade e consensualidade. Hoje temos esses princípios como guias seguros para nossa orientação e atitude diante da mediunidade e das comunicações. Devemos estudar e ponderar com cuidado e atenção sobre esses princípios.
Chico Xavier foi um ser humano ímpar. Tinha suas limitações intelectuais, por ele mesmo admitidas, com toda humildade, em várias instâncias. Veja, por exemplo, o item 14 das explicações do próprio Chico no livro “Emmanuel” [15]. Além de sua grande mediunidade, era possuidor de uma nobreza de espírito e de uma estatura moral sem par. André Luiz também não deixa dúvidas quanto ao seu caráter e elevação moral. Todavia, isso não deve ser desculpa para nos entregarmos à credulidade irrefletida. Do mesmo modo, o crivo da razão recomendado por Kardec, não deve ser usado como instrumento de censura de obras como Nosso Lar só porque foram ditadas por um único espírito a um único médium. Tudo precisa ser examinado com muita calma e mente aberta à luz da doutrina.
É importante separarmos o ensino moral dessas obras dos eventuais acessórios subjetivos. E se esses acessórios subjetivos, por vezes um tanto quanto fantasiosos e carentes de maiores explicações estão presentes em obras como Nosso Lar, a culpa maior não é de Chico Xavier nem de André Luiz. Os maiores culpados somos todos nós espíritas que relegamos a ciência espírita a segundo plano e optamos por trabalhar apenas a parte religiosa do espiritismo. Mais ainda, passamos a idolatrar de modo irrefletido personalidades.
Contrariando as recomendações de Kardec para que procurássemos acompanhar a marcha do progresso e do conhecimento, para fortalecer cada vez mais o espiritismo, optamos por nos agarrar ao aspecto consolador da doutrina. De forma um tanto quanto egoísta, esquecemos que a consolação dada pelo espiritismo não sobreviverá por muito tempo se a doutrina não se mantiver em sintonia com o progresso.
Esse trecho reportado por Chico de um diálogo entre ele e Emmanuel merece nossa atenção e reflexão:
“Lembro-me de que em um dos primeiros contatos comigo, ele me preveniu que pretendia trabalhar ao meu lado, por tempo longo, mas que eu deveria, acima de tudo, procurar os ensinamentos de Jesus e as lições de Allan Kardec e, disse mais, que, se um dia, ele, Emmanuel, algo me aconselhasse que não estivesse de acordo com as palavras de Jesus e de Kardec, que eu devia permanecer com Jesus e Kardec, procurando esquecê-lo” [16]. Também vemos nesta outra referência a importância de Kardec para Emmanuel [17].
A pergunta que me vem a mente é se o recado era somente para Chico? Emmanuel conhecia perfeitamente as limitações de Chico. Seria estranho colocar nos ombros de Chico toda a responsabilidade para analisar e averiguar se obras complexas como Nosso Lar, dentre outras transmitidas por André Luiz, estavam de acordo com as propostas de Kardec. Chico não tinha conhecimentos nem tempo para se debruçar sobre essa tarefa.
Não tenho dúvidas que a expectativa de Emmanuel era que os espíritas do círculo próximo a Chico dessem esse apoio a ele. Não seria difícil se reunirem em grupos de estudos e solicitar a Chico que encaminhasse para Emmanuel e André Luiz questões para maior esclarecimento de certos pontos. Não acredito que Emmanuel ou André Luiz se recusassem a atender essa demanda que não era de mera curiosidade. Era oportunidade real de aprendizado.
Na verdade, na obra “O Consolador” [18] do espírito Emmanuel com psicografia de Chico Xavier, houve uma série de perguntas encaminhadas a Emmanuel. Na definição desse trabalho, no início do livro temos o seguinte (grifos meus):
“Na reunião de 31 de outubro de 1939, no Grupo Espírita “Luis Gonzaga”, de Pedro Leopoldo, um amigo do plano espiritual lembrou aos seus componentes a discussão de temas doutrinários, por meio de perguntas nossas à entidade de Emmanuel, a fim de ampliar-se à esfera dos nossos conhecimentos. Consultado sobre o assunto, o Espírito Emmanuel estabeleceu um programa de trabalhos a ser executado pelo nosso esforço, que foi iniciado pelas duas questões seguintes:”
Não vem ao caso as duas questões iniciais, mas chama a atenção o fato de que a iniciativa veio do plano espiritual. Foi um amigo do plano espiritual que lembrou aos encarnados do questionário. Não fosse isso, provavelmente, não haveria o livro em tela. Outro fato que devemos notar é que, Emmanuel fez um planejamento, mas deixou a execução das perguntas a cargo dos encarnados. Isso está bem em acordo com a codificação que nos esclarece que o plano espiritual está sempre nos ajudando, mas sem fazer por nós o que nos cabe, sem nos tirar a iniciativa e o livre arbítrio em nossas escolhas. Esse livro é de 1940, portanto anterior ao “Nosso Lar” que é de 1944. Isso, de certo modo, é mais um indicativo que as pessoas em torno de Chico por ocasião da publicação de “Nosso Lar” poderiam ter estudado com calma a obra e solicitado esclarecimentos a Emmanuel e a André Luiz sobre os pontos obscuros. Este era o método de Kardec, questionar quantas vezes fosse necessário para esclarecer certos pontos.
Mas há mais. Encontramos nesse livro algumas pistas do que seria apresentado mais tarde por André Luiz, sem também entrar em detalhes. Temos por exemplo na questão 148 um panorama do que encontra o espírito após o desencarne. Emmanuel, sem detalhar, sugere que o espírito busca agrupar-se com outros espíritos cujas atividades se assemelham às que tinha aqui no plano material. Possivelmente, Emmanuel já sabia o que nos traria André Luiz mais tarde, mas o não detalhamento pode ser visto como indicativo de que caberia a nós buscarmos uma melhor compreensão.
Não quero fazer o papel de juiz. Quem sou eu para tanto. Apenas acho importante, com intuito construtivo, apontar essa falha dos espíritas. A oportunidade com Chico Xavier, Emmanuel e André Luiz passou. Mas ainda há muito trabalho que pode ser feito para enriquecermos a doutrina e nosso conhecimento sobre o mundo espiritual. Existem inúmeras obras espíritas ou espiritualistas, dentro e fora do Brasil, tratando de colônias espirituais ou alguma outra forma de organização. A tabela abaixo, obtida com auxílio de Inteligência Artificial, nos dá uma ideia parcial desse cenário.
Obras com Referência a Organizações Espirituais
Autor / Autor Espiritual | Título da Obra | Ano | Organização Espiritual Mencionada |
Desconhecido | Vida dos Santos Padres de Mérida | Séc. VII | Relato de um menino que descreve um lugar espiritual com flores, santos e banquetes. |
Monge Marcos | A Visão de Túndalo (Visio Tnugdali) | 1148 | Descreve uma jornada por regiões do além com habitações e recompensas para os justos. |
Hildegarda de Bingen | Scivias | 1151 | Visões de cidades celestiais com igrejas, palácios e estruturas organizadas. |
Emanuel Swedenborg | Heaven and Hell | 1758 | Descreve sociedades espirituais com casas, templos e comunidades organizadas por afinidade. |
Andrew Jackson Davis | The Great Harmonia | 1850 | Fala de esferas espirituais com leis de afinidade e evolução moral e intelectual. |
Andrew Jackson Davis | The Present Age and the Inner Life | 1853 | Apresenta congressos espirituais e esferas com funções específicas para espíritos. |
Thomas Lake Harris | Arcana of Christianity | 1858 | Descreve planos espirituais com hierarquias e funções simbólicas (pouco detalhado). |
William Stainton Moses | Spirit Teachings | 1883 | Relata ensinamentos de espíritos superiores sobre a vida organizada no além. |
André Luiz / Chico Xavier | Nosso Lar | 1944 | Cidade espiritual com ministérios, governo, hospitais e sistema de trabalho e bônus. |
André Luiz / Chico Xavier | Os Mensageiros | 1944 | Descreve o Centro de Mensageiros e postos de socorro interligados à colônia Nosso Lar. |
André Luiz / Chico Xavier | Missionários da Luz | 1945 | Apresenta equipes de trabalho espiritual, planejamento reencarnatório e hospitais. |
André Luiz / Chico Xavier | Entre a Terra e o Céu | 1954 | Mostra a atuação de equipes espirituais em casos familiares e centros de assistência. |
Mário Frigéri | As Sete Esferas da Terra | 2000 | Explica sete esferas espirituais da Terra, com colônias e zonas de transição. |
Lúcia Loureiro | Colônias Espirituais | 1995 | Estudo sistemático sobre colônias espirituais e suas funções no plano astral. |
Luiz Sérgio | Novas Colônias Espirituais | 2015 | Relata a construção e funcionamento de novas colônias para espíritos recém-desencarnados. |
Abelha (Espírito) / Orlando N. Carneiro | Colônia Espiritual Novo Amanhecer | 2022 | Descreve uma colônia sobre São Paulo com departamentos, escolas e hospitais. |
R.A. Gilbert (org.) | The Golden Dawn | 1989 | Ordem esotérica com estrutura iniciática que simboliza planos espirituais e hierarquias. |
O quadro é penas uma pequena amostra do que existe. Precisamos estudá-las com cuidado. Um grupo de estudos organizado, comprometido com os princípios da codificação e de mente aberta precisa se debruçar sobre essas obras. É preciso buscar correlações, pontos de convergência. Procurar identificar o que é opinião ou interpretação subjetiva do que pode ser tomado como conceito geral mais amplo. Era o que Kardec fazia. Se tantas obras tratam do tema significa que ele tem certo peso e merece atenção.
Além disto, nas questões 766 a 768 do LE vemos que a vida social é importante para o progresso do espírito encarnado. Por que seria diferente para o espírito desencarnado? Se para evoluir os espíritos encarnados precisam se colocar em relação uns com os outros com o objetivo de se instruírem, porque seria diferente na erraticidade? Se o insulamento embruteceria o espírito encarnado, por que seria diferente com o espírito errante? Essas questões são indicativas de que alguma forma de organização deve haver no plano espiritual para colocar os espíritos em relação uns com os outros com o fim de se instruírem mutuamente. Pode ser uma colônia ou algo parecido? Por que não?
É um trabalho de pesquisa que precisa ser levado a cabo por uma equipe de pessoas sérias, comprometidas com os princípios da doutrina. Muitas casas espíritas, além do atendimento fraterno a encarnados e desencarnados, fundamental, diga-se, poderiam também abrir espaço para uma pesquisa mediúnica planejada e de cunho investigativo.
É o descaso com a ciência e com a filosofia espírita que está fazendo do espiritismo uma religião como as outras. Sem qualquer descaso por outras denominações religiosas que merecem todo nosso respeito, precisamos entender que, quem procura uma fé raciocinada, pode acabar se desencantando com um espiritismo que vive anunciando seu caráter científico e filosófico sem qualquer sinal efetivo de comprometimento nesse sentido. A pouca pesquisa que existe acontece fora do movimento espírita, com foco no binômio saúde – espiritualidade. O último censo do IBGE, amplamente divulgado no meio espírita, mostrando certa estagnação, parece indicar esse desencanto.
Vale lembrarmos que o espiritismo não tem, nunca teve e nunca deverá ter como objetivo arrebanhar seguidores. Todavia, o espiritismo não pode desencantar pessoas que, porventura, queiram uma doutrina em sintonia com o progresso da humanidade. Também não pode deixar de atingir a juventude com uma linguagem moderna que reflita a realidade do mundo jovem. Por isso, o espiritismo deve ser uma doutrina inacabada, em permanente construção para o bem e progresso da humanidade. Kardec iniciou a obra, lançou seus alicerces. Cabe a nós, espíritas, darmos continuidade a esse monumental trabalho de Kardec. Era o desejo dele. Mas precisa ser um trabalho efetivo em cima do tríplice aspecto do espiritismo. O trabalho apenas religioso, por mais belo que seja, perderá seu apoio se não cuidarmos dos outros aspectos.
É neste contexto que polêmicas como as existentes em torno das obras de André Luiz se tornam prejudiciais ao espiritismo. Em lugar de unir pessoas e esforços para estudo e enriquecimento doutrinário, dá margem ao culto das vaidades pessoais e afasta o diálogo. Em lugar de atrair pessoas as repele pela falta de coerência na imagem que passa.
Espíritas, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instrui-vos, eis o segundo. (Espírito de Verdade)
REFERÊNCIAS
[1] Pires, José Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo – O Grande Desconhecido. 1.a edição: Junho de 1979. Editora Paideia Ltda. Acesso em 28 de junho de 2025.
[2] Instruções práticas sobre as manifestações espíritas. Vocabulário espírita, erraticidade. Acesso em 28 de junho de 2025.
[3] O Livro dos Espíritos. Parte segunda — Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos. Capítulo VI — Da vida espírita, Espíritos errantes, questão 226. Acesso em 29 de junho de 2025.
[4] Chibeni, S. Seno. A Errata do Livro dos Espíritos, 2015. Portal do Espírito. Acesso em 29 de junho de 2025.
[5] O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo III — Há muitas moradas na casa de meu pai. Diferentes estados da alma na erraticidade.
[6] Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos de novembro de 1859. Swedenborg. Acesso em 29 de junho de 2025.
[7] Swedenborg, Emanuel. Heaven and Hell, Cap. XXI. The Places Of Abode And Dwellings of Angels, 184. Acesso em 29 de junho de 2025.
https://www.globalgreyebooks.com/heaven-and-hell-ebook.html
[8] Honório, Gustavo. Relatos de Experiências de Quase Morte, G1, São Paulo em 20/02024. Acessado em 03 de julho de 2025.
[9] VIDAL, Fabiano Cesar de Mendonça. Em torno do Nosso Lar: uma análise das controvérsias produzidas no movimento espírita. 2014. 100 f. Dissertação (Mestrado em Ciência das Religiões) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014. Acesso em 02 de julho de 2025.
https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/4247
[10] Neto, Paulo. As colônias espirituais e a codificação. Ethos Editora. 2015, 20ª Edição. Acesso em 02 de julho de 2025.
[11] A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Capítulo I — Caráter da revelação espírita, item 55. Acesso em 02 de julho de 2025.
[12] A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Capítulo I — Caráter da revelação espírita, item 54. Acesso em 02 de julho de 2025.
[13] O Evangelho Segundo o Espiritismo, Item II da Introdução, Autoridade da Doutrina espírita. Controle universal do ensino dos Espíritos. Acesso em 02 de julho de 2025.
[14] Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos, abril de 1864, Autoridade da doutrina Espíritos. Acesso em 02 de julho de 2025.
[15] Xavier, Francisco Cândido, Emmanuel – Dissertações Mediúnicas sobre importantes questões que preocupam a humanidade. Pelo espírito de Emmanuel. Acesso em 07 de julho de 2025.
https://bibliadocaminho.com/ocaminho/TX/Em/EmIntrod.htm
[16] Moreira, Leonardo Marmo. Jesus e Kardec na opinião de Emmanuel: Compreendendo o verdadeiro espírita, junho de 2024. Acesso em 02 de julho de 2025.
[17] Xavier, Francisco Cândido (Esp. Emmanuel). Doutrina de Luz. GRUPO ESPÍRITA EMMANUEL S/C EDITORA, G.E.E.M. 1990.
https://www.obrasoriginais.chicoxavier.ca/wp-content/uploads/2023/10/Doutrina-de-Luz-OCR.pdf
[18] O Consolador. — Emmanuel.