Deus

por Cesar Boschetti

 

-O que é Deus?

Essa foi a primeira pergunta que Allan Kardec fez aos espíritos superiores em sua obra seminal, O Livro dos Espíritos. A resposta, simples e objetiva foi, “Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”. O capítulo I desse livro contempla várias outras questões em torno da ideia de Deus. Não iremos repeti-las aqui. Mas vale destacar o conselho dos espíritos sobre o assunto. Eles recomendam que, em vez de corrermos atrás de definições e explicações sobre o que ainda está muito além de nossa capacidade intelectual, vale mais a pena nos dedicarmos a compreender nossas imperfeições a fim de nos livrarmos delas.

É justamente esse conselho que motiva esta reflexão. É uma reflexão sem grandes pretensões, amparada na doutrina Espírita e nos conhecimentos científicos e filosóficos atuais. Afinal, devemos lembrar que o Espiritismo carrega um compromisso com a filosofia e com a ciência.

Além disto, o conselho dos espíritos não está dizendo que é pecado ou inapropriado querermos alcançar melhor compreensão sobre Deus. A recomendação e não fazermos disso uma prioridade maior que a de buscarmos compreender nossos defeitos para corrigi-los.

Mas em algumas passagens antes desse conselho, Kardec, na questão 4 perguntou: Onde se pode encontrar a prova da existência de Deus?”. A qual os espíritos responderam: Num axioma que aplicais às vossas ciências: Não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem e a vossa razão responderá.”

Não satisfeito, Kardec continuou levantando questões, o que significa que a resposta acima não encerrou a questão. Isso é compreensível. A lei de causa-efeito é uma constatação empírica, como afirmado pelos espíritos, é um axioma, isto é, uma verdade fundamental autoevidente, que não pode ser provado matematicamente da mesma forma que um teorema. São a base das construções e modelos mais complexos. São de fato, como bem enfatizou os espíritos, a base da pesquisa científica.

Ocorre que na ciência, busca-se causas materiais para todos os efeitos, sejam eles materiais ou não. Por isso, esse axioma não é universalmente aceito como prova da existência de Deus. Os espíritos sabem disso e por esta razão deram o conselho já apontado, cientes de que nossa capacidade intelectual ainda está longe de penetrar certos mistérios.

Mas as dúvidas nos provocam. Olhando a nossa volta, para o mundo que nos cerca, uma segunda pergunta bastante próxima da primeira, nos acorre. Como compreender Deus, infinitamente perfeito em justiça e bondade, dentre outros atributos, frente à realidade atual com todas as suas misérias e injustiças?

Somos animais racionais. Pensar sobre Deus em busca de um sentido para a vida nos move em frente. Nos dá ânimo para enfrentar e superar as dificuldades do caminho. Por isso, refletir sobre Deus é algo, praticamente, inevitável na vida do ser humano. A existência ou inexistência de Deus é um dogma para nosso intelecto. Nada podemos provar ou reprovar. É uma questão de fé. Não uma fé cega, puramente passiva e contemplativa. Mas uma fé aliada à razão, tentando desvendar os mistérios do Universo. Uma fé que, de algum modo, ainda obscuro para nossa inteligência, nos empurra em frente. Nos faz sentir parte de alguma coisa maior. Uma fé que nos faz acreditar que existe algum propósito para nossa existência. Uma fé que alimenta nosso desejo de saber “quem ou o que somos”, “de onde viemos” e “para onde vamos”. Uma expectativa pulsante de um amanhã após o túmulo. Um impulso de buscar um horizonte além do horizonte.

Há quem considere tudo isso uma muleta para enfrentar a realidade nua e crua da vida. Vida admitida com proveniente do pó da terra e destinada para lá voltar depois de algumas décadas de uma existência estúpida e sem nexo. Não nos cabe julgar essa crença. Uma crença tão dogmática quanto qualquer outra crença que se contente em permanecer dentro dos estreitos limites de seus referenciais, sem qualquer abertura para outros possíveis referenciais. Um materialismo dogmático que acredita já conhecer tudo que existe no Universo. Todos os possíveis estados da matéria e todas as leis que regem a permanente transformação das coisas no Universo.

É por falta desse conhecimento que existe a Fé. É curioso esse ponto. Há pensadores que alegam que se provássemos a existência ou inexistência de Deus acabaríamos com a Fé. O filósofo Soren Kierkegaard, por exemplo, defendia que a fé é um salto para além da razão, e que tentar prová-la racionalmente poderia esvaziar seu significado.

Por outro lado, Voltaire, o filósofo iluminista francês, crítico da intolerância religiosa e defensor da liberdade de pensamento, dizia que se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo. Essa alegação de Voltaire, nos leva a pensar que se nos sentimos cercados por misérias e injustiças, é porque ainda não aceitamos os limites de nossa razão e ainda estamos longe de uma consciência maior “do que somos nós, de onde viemos e para onde vamos”.

De qualquer modo, essas reflexões acabam por nos levar de volta ao conselho dos espíritos superiores, mas um pouco mais conscientes de que Fé não é uma simples muleta emocional. Não é coisa de tolos. Fé é algo além da razão e que a desafia e a faz se expandir. É a proposta espírita da Fé Raciocinada. Não uma Fé Racional, pois está além da razão, mas nada impede que usemos a inteligência e o raciocínio para pensar sobre ela. E aqui segue mais um conselho dos espíritos superiores, em particular do Espírito de Verdade, “Espíritas! amai-vos, eis o primeiro ensino; instrui-vos, eis o segundo”.

Referências:

O Livro dos Espíritos, Parte primeira — Das causas primárias.

O Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo VI — O Cristo consolador. Instruções dos Espíritos, advento do Espírito de Verdade.

Migalhas Filosóficas. Kierkegaard (Domínio público)

Veja também:

O Ateu e o sábio. Voltaire (Domínio público)

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