por Alexandre Fontes da Fonseca
1. INTRODUÇÃO
Podemos dizer que o interesse do movimento espírita por questões científicas é tão antigo quanto a própria doutrina espírita. No Brasil, isso é fato comum como se pode verificar através das datas das primeiras edições de algumas publicações como, por exemplo, as obras do nosso irmão Hernani G. Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito (1958) [1] e Novos Rumos À Experimentação Espirítica (1960) [2]. O número de publicações, em livros e revistas, sobre questões científicas ligadas ou aplicadas ao Espiritismo é bastante expressivo nos dias de hoje. Determinados avanços científicos como, por exemplo, as teorias modernas da Física e as pesquisas na área de Biologia, como a lei de evolução de Darwin, o projeto Genoma e as experiências com a clonagem de animais, despertam o interesse pois esses temas parecem ter alguma conexão, de um jeito ou de outro, com algumas questões espíritas relacionadas à interface espírito-matéria.
A maioria dos espíritas, como a maioria das pessoas em geral, não possui formação profissional em Ciência. Isso dificulta o uso da ferramenta do bom senso na análise de ideias e propostas de caráter científico para os conceitos espíritas, originadas de irmãos desencarnados ou, mesmo, encarnados. Mesmo sabendo que é preferível “rejeitar 10 verdades do que aceitar uma só mentira” [3], os espíritas ficam sem jeito de questionar algumas ideias, mesmo aquelas muito difíceis, seja de um espírito cujo nome retém enorme respeito, seja de um irmão encarnado que possui títulos universitários ou respeito no movimento espírita. Muitos preferem evitar o ato de questionar para evitar melindres e ofensas já que nós espíritas, muitas vezes, consideramos pessoal uma crítica à alguma de nossas ideias. No entanto, essa postura é um engano que pode gerar inconvenientes ainda mais sérios, cedo ou tarde, para o movimento espírita. O progresso exige que tenhamos o entendimento daquilo que nos chega através do intelecto, e quando não podemos alcançar esse entendimento com relação a determinados assuntos, a prudência orienta que aguardemos o futuro antes de lhes dar crédito. É perfeitamente possível compreender que críticas a quaisquer ideias estão longe de representar uma ofensa ao autor das mesmas.
O diálogo sobre Ciência e Espiritismo, que vem sendo apresentado em partes no Boletim de GEAE (N. de 476 a 482) nos levou a uma percepção de que mesmo entre cientistas profissionais existem diferenças em suas opiniões e pontos de vista com relação à questão sobre como a Ciência se insere e contribui com o Espiritismo e vice-versa, isto é, como o Espiritismo, em seu aspecto científico, se coloca diante da Ciência e das várias ciências.
As ideias suscitadas no diálogo acima mencionado e a necessidade de nos munirmos com mais ferramentas para a verificação do critério do bom-senso ensinado por Kardec para com todo o conteúdo espírita que vem sendo divulgado como científico, motivaram o conselho editorial do GEAE a propor-nos a preparação de um conjunto de artigos sobre ao assunto. Iremos, talvez exageradamente, chamar esses artigos de “aulas” sobre Ciência e Espiritismo e o objetivo principal é iniciar uma ampla discussão e orientação com e para os leitores do Boletim do GEAE, sobre questões atuais como: o que é ciência; o que é Física; como o Espiritismo se insere no aspecto científico; o que ou como as ciências, como a Física, podem contribuir para o desenvolvimento ou entendimento de determinados conceitos espíritas; como se produz o conhecimento dito científico e que critérios e métodos existem para analisar se um artigo científico é válido ou não; etc.
Assim, perguntas, dúvidas e comentários sobre o assunto podem ser enviados a qualquer momento. Mais ou menos a cada três aulas (dependendo do número de perguntas) uma aula de dúvidas será preparada para respondê-las.
Neste “curso” buscaremos abordar não apenas algumas definições presentes na literatura espírita sobre aspectos filosóficos da ciência, mas também oferecer um ponto de vista do dia-a-dia profissional deste autor sobre a prática de pesquisa e ciência. Discutiremos algumas orientações básicas para a realização de pesquisas espíritas, teóricas ou práticas, de forma séria e consistente.
Enfatizamos que estes apontamentos não são absolutos sobre o assunto. Comentários, críticas e sugestões serão sempre bem vindos.
2. CONCEITO DE CIÊNCIA
O conceito de ciência não é algo simples que possa ser apresentado com uma ou duas frases. Essa palavra traz múltiplos significados que, em conjunto, refletem a prática e o produto da atividade dita científica. Um dos autores que, ao nosso ver, melhor contribuiu no entendimento desse aspecto e sua relação com o Espiritismo é o Prof. Silvio S. Chibeni. Recomendamos fortemente a leitura e o estudo de seus trabalhos.
Ao falar do aspecto filosófico do Espiritismo, Chibeni [4] comenta que o que hoje chamamos de ciência está historicamente ligado ao que se entendia de filosofia nos primeiros tempos da nossa cultura ocidental. Em outras palavras, a filosofia significa a busca da verdade [5].
E Chibeni, através dos conhecimentos filosóficos modernos, já há mais de 10 anos, analisou e discutiu a ideia de Ciência Espírita [6]. Não é nossa intenção repetir aqui sua análise e argumentação mas sim apresentar um resumo dos pontos principais. O leitor encontrará nas respostas dadas pelo Prof. Ademir Xavier (Boletins números 476 a 482) esse aspecto do conceito de ciência. Os cientistas, em geral, possuem visões particulares que diferem desta análise. Mas já existe algum consenso dentre vários irmãos espíritas (que são cientistas) de que essa análise é legítima.
Uma visão leiga e antiga de ciência diz que a atividade científica compreende os seguintes passos: i) extensa observação dos fatos e aquisições de dados experimentais; ii) análise dos dados e a obtenção de leis gerais; iii) testes experimentais e controlados destas leis gerais através de novas observações e experimentos.
Apesar da atividade científica envolver esses três itens, a ordem pela qual eles ocorrem está longe de ser a que apresentamos acima. Os filósofos, ao analisarem como os cientistas trabalham, perceberam que é impossível observar os fatos sem ter uma hipótese ou ideia pré-concebida. Isto significa que o item (ii) sempre anda de mãos dadas com o item (i) quando não vai a frente como, por exemplo, em algumas descobertas importantes na área de Física de partículas. Por exemplo, a previsão da existência do positron (anti-partícula associada ao elétron), foi realizada anos antes de sua descoberta experimental. Um aspecto muito interessante ressaltado por Chibeni [6] e Xavier Jr. [7] é que a atividade científica envolve uma grande dose de criatividade. Não existe um “método geral” para se obter uma teoria a partir apenas da observação dos fatos. Se isso fosse possível, os cientistas perderiam o emprego uma vez que bastaria programar um computador para seguir tal “método”.
Portanto, ciência é uma atividade humana que envolve o uso da imaginação tanto na proposição de leis e teorias quanto na preparação de ferramentas experimentais ou observacionais para a verificação dos fatos ou da realidade. O desenvolvimento daquilo que chamamos “método científico” também faz parte dessa criatividade. Lembremos que Kardec criou um método para a análise das mensagens mediúnicas. Podemos dizer que a função básica do método científico é ajudar os cientistas a selecionarem, dentre as mil e uma ideias que passam pelas suas cabeças, aquelas que sejam as mais simples e eficazes para a explicação das leis básicas que estão por trás dos fenômenos. Discutiremos mais a respeito do método científico na próxima aula.
Os estudiosos da Filosofia da Ciência perceberam que todas as disciplinas científicas possuem determinadas características que independem da disciplina em si. Essas características que definem o adjetivo científico de cada disciplina, envolvem a existência de um núcleo teórico principal ou conjunto de hipóteses principais (os fundamentos e leis básicas da disciplina científica). Este núcleo possui à sua volta um conjunto de hipóteses auxiliares que complementam e fazem o contato ou a conexão entre os dados experimentais ou fatos observados e o núcleo teórico principal. Essa estrutura é, ainda, acompanhada de regras mais ou menos explícitas que norteiam o desenvolvimento da disciplina. Uma parte dessas regras, ditas negativas garante que o núcleo principal nunca deve ser alterado. As discrepâncias deverão ser resolvidas através de ajustes nas partes não centrais, isto é, dentro do conjunto de hipóteses auxiliares. O conjunto de regras positivas orientam sobre como e onde essas correções deverão ocorrer. A esse conjunto de hipóteses principais ou núcleo teórico principal chamamos de paradigma da disciplina científica.
Com base nestes aspectos filosóficos sobre o que é uma ciência, Chibeni [6] conclui que o Espiritismo é uma verdadeira disciplina científica. E isso é um fato independente das outras disciplinas científicas ortodoxas mais conhecidas como a Física, a Química e a Biologia. Em outras palavras, o aspecto científico do Espiritismo não depende dos conceitos das outras ciências.
Além das referências abaixo, os leitores são referidos aos comentários do Ademir Xavier Jr. no diálogo sobre Ciência e Espiritismo, publicados nos boletins números de 476 a 482 e aos artigos do Prof. Silvio S. Chibeni, referências [4,5].
Na próxima aula, discutiremos o conceito de método científico e como ele se relaciona com as definições de ciência acima e com o Espiritismo.
Referências
[1] H. G. Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito, Editado pelo autor, (1958).
[2] H. G. Andrade, Novos Rumos à Experimentação Perispiritica, Editado pelo autor (1960).
[3] Erasto (Espírito desencarnado), Revista Espírita 8, p. 257, (1861).
[4] S. S. Chibeni, O Espiritismo em seu tríplice aspecto Parte II 2003, Reformador Setembro, pp. 38-41.
[5] S. S. Chibeni, O Espiritismo em seu tríplice aspecto Parte I 2003, Reformador Agosto, pp. 39-41.
[6]S. S. Chibeni, Ciência Espírita 1991, Revista Internacional de Espiritismo Março, pp.45-52.
[7] A. Xavier Junior, Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência 2004, Boletim do GEAE 472.
Fonte: Boletim GEAE 12(483), 15/10/2004