Não faz sentido falarmos em regeneração planetária ou, mais apropriadamente, regeneração da humanidade, sem falarmos em ecologia e sustentabilidade. O progresso moral, ainda bastante atrasado em relação ao material, no futuro, certamente contemplara de forma bem mais abrangente, atenção e respeito pela natureza. Todavia, no presente, a falta de empenho mais enérgico da sociedade como um todo, e do movimento espírita em particular, em prol de ações que combatam a exploração predatória dos recursos naturais e promovam o uso racional da água, do solo e das fontes de energia, acabam por retardar a regeneração da sociedade humana.
A progressão dos mundos como compreendido pelos espíritas, não é exclusiva do espiritismo. Outras doutrinas, como por exemplo, a teosofia, o hinduísmo vedanta e correntes esotéricas, dentre outras, apesar de nuances um pouco diferentes, são aderentes a esse conceito. É difícil precisar, mas é razoável pensarmos que, mais de metade da população mundial acredita em alguma forma de progressão espiritual e cósmica. E é muito importante entendermos que, na Terra regenerada, obrigatoriamente, haverá espíritos encarnados e desencarnados de todas as crenças, culturas e costumes. Não haverá privilégios para esta ou aquela religião, mas sim para a atitude dos indivíduos.
Entre os habitantes da Terra regenerada não haverá somente espíritas ou os que acreditem na progressão cósmica, até porque, não deverá haver nenhum tipo de espírito de seita, de disputa ideológica ou de privilégios sociais nessa nova Terra. Mesmo que muitos espíritos encarnados e desencarnados não logrem fazer parte da terra regenerada, eles jamais deixarão de estar sob o olhar amoroso e benevolente do Pai. Continuarão amparados pela misericórdia divina. E não deixa de ser parte da obrigação moral dos espíritos mais adiantados, empregarem todos os esforços para puxar os mais atrasados. Não deixa de ser obrigação moral de todo espírita, lutar por um mundo melhor para todos, espíritas e não espíritas, cristãos e não cristãos.
Já argumentamos em oportunidades passadas [1 e 2] que o espiritismo, se quiser ser uma das alavancas para a regeneração do mundo, deve abrir mão do seu espírito de seita e pretensão de ser a melhor dentre as religiões. Deve, isto sim, levantar a bandeira do amor e da caridade puros: fora da Caridade e do Amor não há salvação. Esse deve ser o princípio a ser defendido e carregado como lema, sem qualquer espírito de seita que sempre foi motivo de separação entre os homens. Kardec deixa isso claro em várias partes da codificação. Uma das passagens que vem bem ao encontro de nossas considerações merece destaque. Lemos na Introdução do Evangelho Segundo o Espiritismo, item II — Autoridade da doutrina Espírita [3] o seguinte: “O Espiritismo não tem nacionalidade e não faz parte de nenhum culto existente; nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus parentes e amigos de além-túmulo. Cumpre seja assim, para que ele possa conduzir todos os homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno neutro, alimentaria as dissensões, em vez de apaziguá-las”.
De agora em diante, usaremos, LE para Livro dos Espíritos, ESE para Evangelho Segundo o Espiritismo e GE para a Gênese, todos disponíveis na Kardecpedia [3].
Vale notar que não estamos querendo desqualificar nenhuma religião, até porque, o problema não está na religião em si, mas sim nos seguidores. As religiões, de modo geral, apontam o caminho do bem. E muita coisa boa foi realizada dentro dessa premissa ao longo da história. Mas o futuro anseia por uma sociedade livre de rótulos que possam causar antagonismos. O futuro almeja por uma humanidade onde todos se amem, se respeitem e não precisem ostentar emblemas que acabam criando muros.
O espiritismo nos dá essa abertura para o diálogo inter-religioso. Não precisamos nos enfeitar com insígnias que acabam nos afastando dos nossos irmãos que ainda necessitam de um guarda-chuva rotulado para se sentirem confortáveis e acolhidos. Sem rótulos podemos dar testemunho de que somos todos irmãos filhos do mesmo Pai. Essa é a luta que precisamos abraçar. E essa luta envolve mostrarmos efetiva preocupação por nosso planeta, lar de todas as crenças e de todos os povos.
Na época de Kardec, os problemas ambientais ainda não haviam se manifestado com a intensidade conhecida hoje. Mas com a revolução industrial no final do século XVIII, os primeiros sinais de impacto da atividade humana na natureza começaram a aparecer. Ficou famoso o caso das mariposas negras na região de Manchester na Inglaterra. Eram raras antes da atividade industrial, mas com a crescente queima de carvão e aumento da fuligem na atmosfera, árvores na região tornaram-se mais escuras. Antes, essas árvores eram abrigo de mariposas brancas. Devido ao escurecimento das árvores, as mariposas brancas tornaram-se presas fáceis dos predadores e permitiram que as mariposas negras se proliferassem com maior intensidade. O fenômeno começou chamar atenção a partir de 1850 e exemplifica bem o processo de seleção natural proposto por Darwin e Wallace, mostrando também como pressões ambientais causadas pela atividade humana podem interferir no processo evolutivo de certas espécies [5].
O termo ecologia foi cunhado por Ernst Haeckel, biólogo, filósofo e artista alemão em 1869 [4], motivado por seu desejo de sistematizar o estudo das interações entre os seres vivos e seu ambiente, dentro de uma perspectiva evolutiva inspirada por Charles Darwin. Isso mostra que a ciência já começava a se preocupar com as relações entre os seres vivos e o meio ambiente.
Ainda no século XIX podemos destacar George Marsh [6], que em seu livro “O Homem e a Natureza, 1864”, alertou para os impactos negativos da ação humana no Meio Ambiente. John Stuart Mill [6], em sua obra “Princípios de Economia Política, 1848”, também defendeu a necessidade de se considerar os limites da natureza na formulação de políticas públicas em relação ao crescimento econômico.
O termo sustentabilidade surgiu apenas no século XX e ganhou destaque global a partir de 1987, com o Relatório Brundtland da ONU [6], que o definiu como: “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprirem suas próprias necessidades”.
É muito importante que o estudioso espírita perceba que os problemas ambientais eram praticamente desconhecidos na época da codificação. Apesar de já começar haver alguma preocupação como apontado acima com os trabalhos de Haeckel, Marsh e Stuart Mill, o assunto não estava na manchete de todos os jornais. A comunicação era lenta, sobretudo de temas que ainda estavam engatinhando. Mas mesmo sem tratar diretamente de ecologia e sustentabilidade, a codificação não deixou de incluir passagens que, de algum modo, tocam nessas questões.
Vemos, por exemplo, na Lei de Conservação no LE, questões de 711 a 714, clara alusão ao respeito que precisamos ter com os recursos naturais. A parte final da resposta dos espíritos à questão 714 é bastante relevante (grifos meus): “O homem que procura nos excessos de todo gênero o requinte do gozo coloca-se abaixo do animal, pois que este sabe deter-se, quando satisfeita a sua necessidade. Tal homem abdica da razão que Deus lhe deu por guia, e quanto maiores forem seus excessos, tanto maior preponderância o confere à sua natureza animal sobre a sua natureza espiritual. As doenças, as enfermidades e a própria morte, que resultam do abuso, são, ao mesmo tempo, o castigo à transgressão da lei de Deus” (Lei de Causa e Efeito).
Fica muito claro nessa passagem que se continuarmos explorando de forma abusiva e irracional, da água, do solo e das fontes de energia, poluindo o meio ambiente, provocando o aquecimento global e a extinção de várias espécies que são nossos irmãos menores, não tardaremos colher os frutos dessa irresponsabilidade. O futuro do planeta será extremamente hostil às futuras encarnações.
Como falar em regeneração planetária nesses termos?
A lei de Causa e Efeito é divina, eterna e imutável. Deus não irá mudá-la para compensar nossa estupidez. Cabe a nós nos modificarmos se queremos um planeta regenerado.
Vemos ainda dentro da lei de Conservação as questões de 715 a 717 que tratam do necessário e do supérfluo. A parte final da resposta dos espíritos à questão 717 também merece destaque (grifos meus): “Tudo é relativo, cabendo à razão regrar as coisas. A civilização desenvolve o senso moral e, ao mesmo tempo, o sentimento de caridade, que leva os homens a se prestarem mútuo apoio. Os que vivem à custa das privações dos outros exploram, em seu proveito, os benefícios da civilização. Desta têm apenas o verniz, como muitos há que da religião só têm a máscara”.
Aqui também não resta dúvida que o egoísmo de uma parte da humanidade submete outra parte a privações totalmente incompatíveis com o espírito de fraternidade, de amor e caridade propostos pelo espiritismo, bem como, por várias outras doutrinas. Esse espírito deve reinar entre os homens em um futuro planeta regenerado. É impensável uma futura sociedade humana regenerada habitar um planeta arrasado com condições climáticas violentas e oceanos e rios poluídos e sem vida.
Como falar em regeneração enquanto subsistir a chaga do egoísmo? Como não perceber que o egoísmo está por trás de todos os danos causados pelo homem a si mesmo e à natureza?
É notável, talvez mais que mera coincidência, e sim prova do alcance dos princípios fundados no amor e na caridade, como os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável adotados pela ONU na Figura1, dialogam com princípios doutrinários, mostrando a abrangência e atualidade do espiritismo, ou melhor, dos princípios fundados no amor e na caridade. Isso eleva bastante nossa responsabilidade como espíritas e serve de alerta para que reflitamos profundamente sobre nossa postura frente a realidade do nosso mundo e frente nossa cota de participação no processo de regeneração da humanidade.
Vamos explorar essas relações entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e os princípios da Doutrina Espírita destacando como esses objetivos se entrelaçam e encontram respaldo na codificação, principalmente no LE, ESE e GE. A abordagem espírita, com sua visão espiritual do progresso humano, oferece uma perspectiva profunda e integradora dos ODS. O painel da Figura 1 deveria estar afixado em todas as casas espíritas, em todas as igrejas e templos de todas as religiões. Precisarmos derrubar os muros que nos prendem ao passado e nos impedem de avançar para o futuro.
Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável proposto pela ONU, embora distintos, são profundamente interdependentes. Erradicar a pobreza (ODS 1), por exemplo, não é possível sem garantir educação de qualidade (ODS 4), trabalho digno (ODS 8) e redução das desigualdades (ODS 10). A Doutrina Espírita, por sua vez, vê o progresso humano como resultado da evolução moral e intelectual dos Espíritos. O progresso puramente intelectual (material) não elimina o egoísmo e a ganância causadores de desigualdade. No LE, questão 780a e 780b: “O progresso moral decorre do progresso intelectual mas nem sempre o segue imediatamente.” E também no LE questão 785: “O maior obstáculo ao progresso é o orgulho e o egoísmo”.

Figura 1—Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) adotados pela ONU durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em Nova York em 25 de setembro de 2015.
A caridade, princípio central do Espiritismo, é a chave para compreender vários ODS. No ESE, capítulo XIII, aprendemos que a verdadeira caridade vai além da esmola. Ela envolve empatia, justiça e solidariedade. Isso se conecta diretamente com os objetivos de erradicação da pobreza (ODS 1), fome zero (ODS 2) e saúde e bem-estar (ODS 3). A questão 886 do LE define caridade como: “benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições alheias, perdão das ofensas.”
A educação (ODS 4) é vista como instrumento essencial para a transformação moral. Allan Kardec afirma, ao longo da resposta à questão 917, bastante longa, que “a educação convenientemente entendida é a chave do progresso moral”. É essa educação plena o melhor remédio contra o egoísmo, raiz de muitos males sociais. Essa educação não se limita ao ensino formal, mas inclui o desenvolvimento da consciência espiritual e da responsabilidade coletiva, formando verdadeiros cidadãos.
A igualdade de gênero (ODS 5) encontra respaldo na visão espírita da igualdade essencial entre os Espíritos. Na questão 817 do LE, os Espíritos afirmam que “homem e mulher são iguais perante Deus.” A reencarnação reforça essa igualdade, pois todos experimentam diferentes condições sociais e biológicas ao longo de suas existências.
A preservação da natureza e o uso responsável dos recursos (ODS 6, 12, 13, 14 e 15) são tratados como deveres espirituais. A Terra é vista como escola evolutiva, e o abuso dos bens naturais é contrário à lei de conservação. Na GE, capítulo VI, a Terra é apresentada como parte de um sistema harmônico, e os flagelos naturais, segundo a questão 737 do LE, são advertências que visam despertar a consciência coletiva. O abuso dos recursos naturais causa impactos no meio ambiente e no clima do planeta. Pela lei de Causa e Efeito teremos que colher as consequências de nossa irresponsabilidade.
O trabalho (ODS 8), longe de ser punição, é considerado lei natural. Na questão 674 do LE, os Espíritos dizem: “O trabalho é uma necessidade para o homem.” O progresso técnico (ODS 9) é bem-vindo, desde que guiado pela moral, como ensinado na GE, capítulo XVIII: “O progresso da humanidade se cumpre em virtude de uma lei eterna e imutável”. Entretanto, a harmonia entre o progresso moral e intelectual e responsabilidade nossa.
A construção de sociedades justas e pacíficas (ODS 16) exige instituições baseadas na ética e na espiritualidade. No ESE, capítulo IX, ensina que “os brandos e pacíficos” são bem-aventurados, mas a questão 932 do LE alerta: “O mal domina porque os bons são tímidos.” A regeneração da sociedade depende da ação consciente dos Espíritos encarnados e também desencarnados. Depende também dos tímidos (Talvez acomodados seja mais exato) quererem sobrepujar os maus.
Por fim, o ODS 17, parcerias e meios de implementação, encontra eco na fraternidade universal, princípio que permeia toda a codificação espírita. Como afirma a GE, capítulo XVII: “O bem reinará na Terra quando entre os espíritos que a vêm habitar predominarem os bons”. A caridade em ação, o respeito à diversidade e o compromisso com o bem comum são os pilares dessa nova era.
Percebe-se que os objetivos ODS não são apenas metas políticas ou sociais, mas também expressões de valores espirituais que o Espiritismo reconhece como fundamentais para a evolução da humanidade. Não podemos deixar de lamentar que o movimento espírita brasileiro, com algumas poucas exceções, ignore essa questão fundamental para a regeneração do planeta.
“Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instrui-vos, eis o segundo”. (O Espírito de Verdade, Paris, 1860 – ESE cap. VI item 5)
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração […] e ao teu próximo como a ti mesmo”. (Mateus 22:37–39)
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32)
O amor ao próximo é central na Torá (Levítico 19:18), e o estudo da Torá é considerado um dever sagrado. Judaísmo
O Alcorão exorta à compaixão e ao conhecimento: “Deus elevará em graus os que dentre vós crerem e os que receberam o conhecimento” (Surata 58:11). Islamismo
A compaixão (karuṇā) e a sabedoria (prajñā) são dois pilares do caminho espiritual. Budismo.
O Bhagavad Gita valoriza tanto o amor devocional (bhakti) quanto o conhecimento espiritual (jnana). Hinduísmo.
Não é inspirador perceber que falamos todos a mesma coisa com palavras diferentes? Como não reconhecer que somos todos irmãos e não precisamos de muros ostentando emblemas desta ou daquela religião para nos afastar?
REFERÊNCIAS
[1] Boschetti, Cesar; Terra nova – crônica de ficção.
https://espiritualidades.com.br/Artigos/B_autores/BOSCHETTI_Cesar_tit_Terra_Nova.htm. Acesso em 17/11/2025.
[2] Boschetti, Cesar; Kardec e os rumos da evolução.
https://geae1992.com.br/kardec-e-os-rumos-da-evolucao/. Acesso em 17/11/2025.
[3] Kardecpedia, obra espírita completa incluindo os 12 volumes da Revista Espírita, disponível na internet; https://kardecpedia.com/. Acesso em 17/11/2025. Acesso em 17/11/2025.
[4] A saga das mariposas; Arquivo Ciência Hoje nº 338, julho de 2016.
https://cienciahoje.org.br/artigo/a-saga-da-mariposa/. Acesso em 17/11/2025.
[5] Veja nesta página um breve resumo sobre o termo ecologia e ligação para um excelente artigo da UFSC – Universidade Federal de Santa Catariana, com extensa introdução ao assunto: https://brainly.com.br/tarefa/61283653. Acesso em 17/11/2025.
[6] Martinez, Luzia; História da Sustentabilidade – O que é, origem do conceito e o futuro.
https://123ecos.com.br/docs/historia-da-sustentabilidade/. Acesso em 17/11/2025.

