Apresentação
Durante o final de 2003 e início de 2004 diversos e-mails encaminhados ao GEAE versavam sobre a relação entre a Ciência e o Espiritismo. Questões e Comentários que nos levaram a discutir o tema e buscar uma forma de sintetizá-lo.
Desta busca nasceu este artigo, em forma de diálogo, onde os participantes são Ademir Xavier e Alexandre Fontes da Fonseca. A apresentação de cada um deles se fará mais detalhadamente no início do diálogo, mas basicamente são dois Espíritas de formação cientifica e especialização na área da Física.
Além destes participantes diretos, tivemos também a participação dos editores do GEAE, comentando e ajudando no encaminhamento do diálogo. De minha parte fiz o papel de moderador e de compilador das respostas. A ordem das perguntas e sua organização final refletem a estruturação em um artigo para o Boletim mas foram originariamente e-mails trocados durante o debate.
Com o propósito de organizar o debate adotamos por regra colocar inicialmente a questão debatida e a seguir a resposta de cada um dos participantes, ordenadas por ordem alfabética. As réplicas e tréplicas, quando houverem, seguirão após as respostas originais.
Muita Paz,
Carlos Iglesia
Definição de Escopo
Na definição de Allan Kardec o Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que decorrem dessas relações (KARDEC, 1995)
Decorre já desta definição um relacionamento entre a metodologia de pesquisa da Doutrina Espírita e a das ciências ordinárias, bem como uma correlação entre seus avanços e o aperfeiçoamento da compreensão filosófica do mundo – conceito que os filósofos alemães celebrizaram com o nome de “Weltanschauung” (visão de mundo) – proposta pelo Espiritismo.
Aparentemente simples estes relacionamentos tem levado defensores e opositores da doutrina a repetidas confusões. Desde as mais simples – como atribuir a cada nova descoberta cientifica foros de comprovação ou reprovação de afirmações espíritas pontuais – até as mais refinadas como as que buscam enquadrar a ciência espírita dentro dos estreitos limites obedecidos pela epistemologia[1] das ciências ordinárias, esquecendo-se que o Espiritismo não só lida com fenômenos espirituais que escapam a mensuração direta por instrumentos materiais como também é em parte “Revelação”.
É portanto no esclarecimento destes relacionamentos que focaremos nossa atenção. O que se pode dizer sobre a relação Espiritismo e Ciência ordinária? Como as descobertas nos dois campos se relacionam e como podem ser extrapoladas de um para outro. Qual o ferramental para estas análises e o seu critério de validade.
Os Participantes
Uma vez que estaremos tratando de temas bastante especializados é importante que sejam apresentados os participantes, indicando o seu nível de conhecimento no campo científico. Ambos prefeririam ser identificados da forma mais singela possível, mas neste caso em especial, precisaremos nos ater mais as regras que seguem publicações especializadas em ciência do que propriamente as que costumamos usar. Assim:
[Ademir] Recebeu seu PhD em Física em 1997 na Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP trabalhando com aproximações semiclássicas a sistemas quânticos unidimensionais e bidimensionais. Após um curto estágio na Universidade de Freiburg in Breisgau, Alemanha, publicou vários trabalhos em física de aceleradores com especial atenção à otimização de anéis aceleradores de elétrons de altas energias. Atualmente dedica-se à pesquisa operacional, geração automática de programação de produção, desenho de sistemas ópticos e de RF e reconhecimento de imagens. É membro do conselho editorial do GEAE desde 1997, com particular interesse em epistemologia e na relação Ciência-Espiritismo.
[Alexandre] Frequenta o centro espírita desde pequeno mas passou a se interessar pela leitura e estudo da doutrina espírita aos 15 anos de idade. É Físico formado pela Unicamp onde também realiza os cursos de mestrado e doutorado. Atualmente é pós-doutorando no Instituto de Física da USP. Já visitou como estágios de período mais ou menos curto o Departamento de Matemática da Universidade do Arizona, o Instituto de Física Teórica no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e o Departamento de Química de RUTGERS, The State University of New Jersey. É cientista, físico, em inicio de carreira com alguns poucos artigos publicados.
Debate
1) É importante começarmos pela definição do que estamos discutindo, assim é natural que a primeira pergunta seja o que é “Ciência”?
[Ademir] Uma definição popular diz que a ciência é a parte do conhecimento que estuda a Natureza. Uma resposta precisa, clara e definitiva é entretanto impossível de ser feita em tão curto espaço, requerendo conhecimentos específicos da área da filosofia conhecida como epistemologia. Ver Boletim 300 para maiores explanações nessa área por Silvio S Chibeni.
A resposta na primeira frase acima está muito longe de ser definitiva e torna-se importante saber o que caracteriza uma determinada disciplina como tendo status de “ciência”. Isso é mais fácil de fazer do que o contrário. A reinvidicação por parte de muitas disciplinas (tais como biblioteconomia, história, psicologia, estudos sociais etc.) desse status tornou-se algo muito procurado hoje em dia, dado o prestígio de que a atividade científica – gerada pelo trabalho de ciências tais como biologia, física, química – tem na sociedade. O prestígio vem sobretudo (no meu entender) das consequências palpáveis na vida moderna da atividade científica tais como as inumeráveis aplicações tecnológicas, a prevenção e cura de doenças, a projeção de sistemas biológicos com propriedades específicas etc.
Em geral, o que caracteriza uma ciência bem estabelecida após atingir o estágio de maturidade é a existência de um paradigma que coordena, direciona e estabelece a pesquisa científica. O conceito de paradigma como princípio organizador da atividade genuinamente científica suplanta as concepções populares sobre a existência de um “método científico”. Mas uma imensa maioria de pessoas (bem instruídas diga-se a verdade) ainda acredita que toda atividade científica deve seguir rigorosamente um método (científico) e que os resultados das pesquisas são “rigorosamente comprovados”. Assim, pelo critério do método costuma-se desqualificar uma determinada disciplina – mormente se é o caso de o objeto de estudo ser de observação indireta (como veremos abaixo é o caso da Cosmologia, radioastronomia etc.) como tendo caráter científico. O Espiritismo – principalmente quando analisado em sua superfície e com visão pré-concebida, também tem seu caráter científico rejeitado, o que não é o caso.
Dentro da Doutrina Espírita podemos dizer que a atividade das chamadas ciências ordinárias (que seguem modelos ou paradigmas científicos bem estabelecidos) está intimamente relacionada ao estudo do elemento material. Obviamente que essa afirmação é válida dentro das visões de mundo onde o Espírito é elemento integrante da realidade. Nas visões onde esse elemento não é reconhecido, a única realidade é a matéria e disciplinas que pretendam estudar o elemento espiritual tem seu reconhecimento rejeitado.
[Alexandre] Uma definição (não sei é popular) de “método cientifico” é tal que diz que o conhecimento é construído/obtido a partir dos estágios:
1) Observação da natureza
2) Proposição de um modelo teórico
3) Teste do modelo através de experimentos
Porém, essa definição está longe de acontecer na realidade. O que a gente vê (e faz no nosso trabalho) é as vezes primeiro propor modelos, depois observar a natureza ou fazer testes através de experimentos e perceber algo novo ou etc. A ordem acima pode ser quebrada e como o Ademir respondeu em outras questões abaixo muitas predições dos modelos teóricos só foram verificados experimentalmente no futuro.
Portanto, como o Ademir escreveu acima, produzir conhecimento que mereça o adjetivo “científico” não requer seguir um método específico mas sim estar de acordo com o paradigma maior que define o campo de estudo.
O que eu gostaria de acrescentar é que, independente do campo de estudo, existe uma necessidade de verificar a descrição da realidade que criamos, isto é, verificar o modelo teórico. Esse é um ponto que é comum a todos os campos de estudo. E Kardec foi muito cuidadoso com esse aspecto ao criar um forte laço entre a codificação e os “fatos”. No item VII da introdução do Livro dos Espíritos Kardec diz que os fatos é que dão a palavra final sobre a realidade. Em física, os “fatos” são verificados experimentalmente enquanto que em Cosmologia os “fatos” são apenas observados. Mas, dentro desse critério de verificação através dos fatos, a física, a cosmologia e o espiritismo são legítimos.
2) Dentro da ciência, qual é a posição da Física?
[Ademir] A física é a parte da ciência que estuda a matéria em seu estado mais elementar e primitivo. Essa definição também é muito limitada e, para ser complementada satisfatoriamente, exigiria uma grande explanação sobre os principais ramos de pesquisa da física moderna.
O que nos parece ser relevante conhecer a respeito do status científico da Física é sua estruturação completamente dentro dos moldes de paradigma. O exemplo mais marcante (e que influenciou a pesquisa na física desde o século 17) foi o desenvolvimento da mecânica. Rigorosamente a mecânica tem como objetivo estudar o estado de movimento da matéria. Aqui, por “matéria” podemos entender um simples “ponto material”, ou seja, uma abstração teórica que se consegue tomando um objeto material de qualquer tamanho e reduzindo infinitamente suas dimensões (termo usado aqui em sentido não próprio da física), mantendo-se contudo inalterável sua “massa”.
O estado de movimento em nosso “espaço” é definido na mecânica por um conjunto de seis coordenadas, três para a posição segundo um sistema de referência preferencialmente “inercial” e mais três para o momento ou quantidade de movimento igualmente medida nesse referencial.
Segundo a mecânica, dado uma descrição completa das forças que atuam nesse “ponto” é possível conhecer o estado futuro desse movimento. O conhecimento é tanto mais preciso quanto mais preciso forem nosso conhecimento a respeito do estado inicial. O fato é que com essas e outras noções foi possível explicar e prever admiravelmente uma grande quantidade de fenômenos observáveis. As leis da mecânica para o ponto material podem ser generalizada para distribuições arbitrárias de matéria e, juntamente com leis complementares (tais como as leis da gravitação, as forças de atrito etc), permitem explicar quase que a totalidade dos fenômenos de movimento observáveis (e muito mais complexos) tais como: fenômenos meteorológicos (uma extensão da mecânica aos fluidos), vibração de estruturas (teoria da elasticidade), levitação de objetos mais pesados que ar (dinâmica de fluidos), dinâmica dos planetas, cometas, origem do sistema solar etc.
De todos as divisões da física não é exagero dizer que a mecânica exerceu maior influência em outros ramos paralelos tais como os desenvolvimentos tecnológicos nas engenharias. De olho nesse sucesso, muitas disciplinas procuram se esforçar para atingir um nível de madureza como atingido pela mecânica na física.
O caráter científico da mecânica vem assim de sua estruturação na forma de um “paradigma”. Esse se confunde com as leis de movimento de Newton complementados por leis particulares que servem para conectar o paradigma à realidade da Natureza. A noção de paradigma é estendida a outros ramos da física sem exceção: eletromagnetismo, física nuclear, termodinâmica, física estatística, mecânica quântica, óptica etc. A noção de paradigma ou a estruturação do conhecimento científico como um paradigma não foi feito de caso pensado na física. Antes, desenvolveu-se de maneira totalmente independente entre os vários campos e pode ser inferido posteriormente pelas pesquisas em história da ciência.
Repetimos que o paradigma é um indício muito forte de amadurecimento de uma disciplina como científica – independentemente do campo de estudo. Assim, se uma disciplina se dispõe a estudar o elemento espiritual -através de suas inúmeras manifestações – e conseguir atingir o nível paradigmático, terá atingido maturidade científica. Esse é o caso do Espiritismo (ver referências abaixo).
[Alexandre] Nada a acrescentar às palavras do Ademir.
3) Dentro da Física, quais são os campos de estudos que lidam com a física quântica e com a cosmologia? Em que diferem seus métodos de trabalho e objetivos?
[Ademir] Mais propriamente falando a “mecânica quântica” (sinônimo para física quântica) é o ramo da física que se formou como uma extensão da mecânica – é uma mecânica de fato – mas que dispõe de um paradigma completamente diferente da mecânica clássica. A mecânica quântica tem como objeto de estudo os estados da matéria em seu nível mais elementar, lidando com quantidades de movimento ínfimas se comparadas às quantidades de movimento associados aos fenômenos do dia-a-dia.
A cosmologia é uma área intermediária entre a astronomia (através da astrofísica) e da física cujo objetivo é formular modelos de universo. Diferentemente da física, a astronomia seguiu um caminho próprio. A astronomia é uma ciência muito mais “fenomenológica” no sentido que tende a formular modelos que se adaptem ao máximo ao que se observa no céu (lembremos do caso do sistema de Ptolomeu dos planetas orbitando a Terra, inclusive o Sol).
A interdisciplinaridade entre a astronomia e a física é algo de há muito bem estabelecido, seja através da astrofísica ou da mecânica celeste (uma aplicação da mecânica clássica determinista mais considerações geométricas de transformação entre sistemas de referência). Rigorosamente falando, do ponto de vista histórico, a evolução da compreensão do estado de movimento dos astros (um dos objetivos da astronomia) teve que esperar o desenvolvimento da física, principalmente a formulação do paradigma da mecânica. A pesquisa astronômica é independente contudo, sendo complementada através de modelos da física. Por exemplo, tomemos as observações de sistemas de estrelas binários muito próximos, a busca por discos de “acreção” adicionados os modelos para esses discos, a descrição estatística da distribuição e propriedade das estrelas – que desenvolveu-se independentemente da física, mas complementada por esta etc. Podemos dizer que a pesquisa astronômica vai muito longe, mas vai muito mais se feita em companhia da física.
A cosmologia desenvolve-se como um programa de pesquisa na forma de proposições de modelos de universo. Ligada à astronomia, a origem da cosmologia é muito antiga e todos os povos desenvolveram noções cosmológicas.
Mais modernamente, a cosmologia estrutura-se seguindo paradigmas da física tais como a relatividade geral, a mecânica de Newton e geometria. A adequação empírica das teorias cosmológicas é muito restrita dada a natureza do objeto de estudo: não se podem fazer experimentos, não é possível reproduzir os fenômenos e muito menos controlá-los. Podemos fazer um paralelo entre a cosmologia e a meteorologia: da mesma forma que aquela, a meteorologia sofre da impossibilidade de se fazer experimentos, tendo-se que contentar com a busca de modelos que representem fielmente o que é visto, dentro de noções mais abstratas de fundamentos que impedem a construção de modelos por mera geração ou proposição de leis que se adicionam infinitamente. O objetivo de uma atividade científica desse tipo é construir modelos que sejam simples e ao mesmo tempo suficientemente abrangentes para cobrir vasta gama de fenômenos.
Assim, se formos observar a base dos modelos dinâmicos para descrição de fenômenos meteorológicos, veremos que são bastante simples, fundamentados em conceitos primitivos da dinâmica de fluidos, termodinâmica e mecânica de Newton. A cosmologia, baseando-se em conceitos mais primitivos da física tais como a relatividade, a dinâmica e a geometria, propõe modelos de universo que visam descrever o estado do universo inicial – como uma extrapolação do que se observa hoje e, se possível, seu futuro. Não é difícil imaginar que diante da possibilidade de que as leis da física se alterem com o passar de muitos anos (o que não é admitido por princípio, mas é plausível) e de outros problemas teóricos, a descrição do universo primitivo e do futuro do universo sofre de inúmeros problemas, e conferem à cosmologia uma roupagem de “crença” aparente, visto que a ideia de crença se baseia popularmente na noção de algo que se acredita simplesmente.
Entretanto, a cosmologia enquadra-se no conceito de ciência pois possui um paradigma: atualmente o chamado “modelo padrão” (a despeito de problemas de adequação empírica que surgem pela descoberta de novos fatos e disponibilidade de novas observações), é o paradigma em uso pela cosmologia.
[Alexandre] Segundo o livro “Quantum Questions” do filósofo Ken Wilber (Shambhala Publications, Boston 2001), os grandes físicos (Heisenberg, Schroedinger, Planck,etc) tinham consciência de que a física (suas teorias) se alteram com o tempo. Inclusive, Wilber afirma que todos eles eram ao mesmo tempo religiosos e não concordavam que a física deve ser usada para explicar os fenômenos “místicos” justamente porque a fisica do amanhã pode vir a ser bem diferente da fisica do hoje. Wilber também menciona uma critica atual ao livro O Tao da Física (Fritjof Capra) porque o modelo usado pelo Capra (teoria do bootstrap) não é a mais aceita hoje (que é o modelo padrão).
André Luiz, no mecanismos da mediunidade, de forma muito interessante, ao meu ver, também menciona, como um cuidado a se tomar, que a ciência de um século muitas vezes é suplantada pela do século seguinte. Isso é um cuidado básico que devemos lembrar (que o Ademir lembrou bem).
Referências
[1] H. C. Miranda, Sobrevivência e Comunicabilidade dos Espíritos, Editora FEB, 3ª Edição (1975).
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Fonte: Boletim GEAE 12(476), 15/06/2004