Uma história do fogo

Introdução

Vamos falar de um formidável salto do ser humano. Vamos falar de uma história fantástica. Uma história do fogo.

O homem primitivo aqui em cima perdido em uma terra virgem e desconhecida. Nosso planeta, nosso único lar material, imponente astro azul rotacionando no espaço, nos convida a soltar nossa imaginação, liberar nossas mentes e refletir um pouco sobre nossa história.

Uma história que mescla, medo, admiração e poderosa pulsão para superar dificuldades e compreender o desconhecido. Um triângulo poderoso de pulsões, sentimentos e emoções que, hoje, poderíamos identificar como Religião, Ciência e Filosofia, mas que nasceram completamente imbricados e amalgamados entre si na mente humana.

Por um instante tente soltar sua imaginação, liberar-se de seus preconceitos e colocar-se no lugar de nosso herói, Uga. Tente sentir suas emoções e pulsões. Tente ver como pode ser poderoso e belo harmonizar forças que, hoje, por orgulho e egoísmo, insistimos em desarmonizar e confrontar uma com as outras.

Será possível assinalar uma conexão entre consciências? A consciência tosca de Uga e uma consciência maior externa a Uga? Não sei! Libere sua mente. Vamos embarcar nessa viagem. Uma viagem ao nosso berço.

O primeiro passo

O ato de acender uma lâmpada ou mesmo acionar toda uma linha de produção de uma indústria automobilística para moldar a lataria de um carro, parece brincadeira de criança. São coisas que até um cão treinado pode fazer com facilidade. Tudo se resume a apertar um botão. A energia em suas várias formas, faz parte de nosso cotidiano. Acionar o motor de um carro ou ligar o forno para assar uma pizza são coisas, absolutamente, corriqueiras. Seria difícil, senão impossível, imaginarmos a vida moderna sem essas coisas. Mas o caminho percorrido pelo ser humano até chegar à essas facilidades, foi longo, muito longo.

Nossos ancestrais levaram milhares e milhares de anos para conseguir o domínio do fogo. Não foi uma tarefa fácil. O ato, “ridiculamente simples” de acender um fósforo, representa a luta e esforço de milhares de indivíduos ao longo de milhares de anos. A determinação cronológica precisa, e as circunstâncias exatas em que se deu esse grande passo da humanidade, não são possíveis de se conhecer. É provável que não tenha sido um evento isolado. É mais plausível supor que o domínio do fogo tenha sido conquistado e perdido várias vezes ao longo das gerações e, em lugares e circunstâncias diferentes.

Isso não importa. Num sentido mais amplo podemos, perfeitamente, retratar essa formidável façanha pela estória de Uga, “O Deus dos Macacos“. A luta do homem com a natureza hostil e contra seus próprios temores do desconhecido, deve ter sido fenomenal. Não fosse a coragem ou curiosidade de um Uga ou, quem sabe, um raio fortuito, é quase certo que você não estaria hoje ouvindo essa história. É provável inclusive que você sequer existisse ou fosse ainda, apenas um outro Uga, ou talvez nem isso.

Foi o fogo que deu ao nosso tataravô pré-histórico o poder de realmente dominar outros animais. Foi graças ao fogo que o homem pode sair de seu ninho seguro para desbravar o planeta. Foi o fogo que permitiu ao homem sobreviver aos rigores do tempo. Foi o fogo que permitiu ao homem desenvolver uma tecnologia, derreter metais, derreter areia para fazer vidro e cozer alimentos. Sem o fogo, continuaríamos eternamente na pré-história ou, quem sabe, teríamos sido simplesmente extintos por animais mais fortes e melhor adaptados ao meio. Parece estranho, quase um absurdo, que uma simples tocha de madeira tenha feito tamanha diferença. Mas é exatamente esse o ponto. Pequenas coisas podem fazer grandes diferenças, a misteriosa beleza do Universo.

O Deus dos Macacos

O calor que descia dos céus era sufocante. Klep – era assim que Uga e seus companheiros chamavam a grande bola de fogo – que já havia completado muitos e muitos ciclos no céu, sem que Xuhá mandasse suas águas refrescantes. Uga, quase sem conseguir respirar, sufocado pelo calor, estava preocupado. Ele era o líder do grupo de cerca de 40 indivíduos entre machos, fêmeas e filhotes. Sentia-se responsável por eles. Todos o respeitavam, mas ao mesmo tempo pareciam culpá-lo pela longa estiagem. O suor que escorria em abundância pelo seu corpo todo, misturava-se ao pó fino e escuro da caverna, impregnando-lhe a pelugem rala com uma gosma pegajosa e fétida. A sensação de desconforto era terrível. O grupo achava-se prostrado ao chão, arquejantes pelo esforço da luta contra os intrusos. Uga também estava exausto, o esforço e o calor sufocante pareciam entorpecê-lo. Era uma sonolência hipnótica e irresistível.

A região, ampla e normalmente tranquila, era rica em caça miúda. As grandes feras quase não se aproximavam do local, protegido por encostas íngremes que se estendiam pelos dois lados da caverna. Numa extremidade da encosta e não muito longe ficava a grande água. No outro extremo, achava-se a mata, densa e fechada. Eram árvores enormes, entremeadas por arbustos e cipós espinhentos que também se estendiam até a grande água pelo lado oposto. O cenário era belo e tranquilo. A natureza criara ali um paraíso seguro e confortável. Uga nascera ali. Aquele era seu mundo e seu povo.

Por vezes, movidos pela curiosidade, Uga e mais alguns machos mais ousados, avançavam um pouco mata adentro. Havia em meio ao emaranhado de cipós e espinhos, algumas aberturas que eles conheciam bem. Elas conduziam ao outro lado da floresta, que se abria em uma planície vasta a perder-se de vista. Lá o grupo já havia se defrontado com animais perigosos. Havia inclusive alguns indivíduos parecidos com Buga, amigo inseparável de Uga. Buga era forte e alto, destacando-se do resto do grupo, mas não discutia a liderança de Uga, ao contrário, sempre se mostrara tranquilo e submisso. Mas aqueles outros indivíduos eram muito mais peludos e pareciam bem mais fortes que Buga. Havia um certo respeito entre os dois grupos. Já tinham se defrontado algumas vezes, nas quais o grupo de Uga saíra vitorioso, graças aos tacapes de pau e as lascas de pedra cortante. Uga achava estranho aqueles indivíduos não usarem tacapes nem lascas de pedra, mas ao mesmo tempo sentia-se feliz e seguro por isso.

Desde pequeno, Uga aprendera a selecionar cuidadosamente os galhos quebrados e secos de madeira dura. Estes eram cuidadosamente raspados com pedra até adquirirem a forma e peso adequados. Era um longo processo aos quais todos os machos se dedicavam com veneração. As lascas de pedra também precisavam ser cuidadosamente escolhidas ou extraídas da encosta rochosa. Era um trabalho permanente que ocupava boa parte do tempo em que Klep permanecia no céu. O resto do tempo era dedicado à caça e aos rituais de se coçarem uns aos outros em busca de parasitas.

Mesmo munido de tacapes, Uga sentia que não poderia se aventurar muito além do seu pequeno paraíso. O mundo além da mata já dera provas de perigo e parecia não oferecer esconderijos seguros. Era isso que o atormentava. A grande água estava encolhendo, expondo passagens antes inacessíveis. A mata, fechada e densa, estava agora semi ressequida e cheia de aberturas que se ampliavam cada vez mais. Os grandes animais do outro lado começavam a descobrir essas passagens e vinham em busca da água e caça. Isso era extremamente perigoso. Uga e seus companheiros haviam até aquele momento conseguido vencer os intrusos que cada vez chegavam mais perto da caverna.

A grande caverna, normalmente fresca, parecia agora sem ar, como se este tivesse sido expulso por Klep. A parede ao fundo era recortada por reentrâncias escuras e recobertas por um limo aveludado e úmido. Do lado esquerdo havia uma fenda um pouco maior, quase na junção com a parede lateral. Essa fenda descia até perto do chão, onde desaparecia por trás da ponta de um enorme bloco de pedra. Esse bloco, que ocupava toda essa lateral da caverna, parecia ter se destacado da parede, inclinando-se para frente. Em ocasiões em que a frequência de Xuhá era maior, água pura e fresca escorria por aquela fenda. Fora Uga quem notara isso primeiro, pois a água escorria na forma de um filete que serpenteava pela fenda de modo silencioso e invisível, para em seguida sumir no canto próximo ao chão.

Esse lado da caverna praticamente não era utilizado, o chão muito acidentado e a parede inclinada não ofereciam conforto para se recostar.  Os companheiros de Uga quando não estavam em busca de comida, passavam a maior parte do tempo se coçando uns aos outros ou trabalhando seus tacapes, alheios ao mundo. Uga era um hominídeo comum, seu aspecto físico não tinha nada de especial comparado ao restante do grupo. Sua personalidade talvez guardasse algumas particularidades, mas muito sutis para que ele próprio ou o grupo a notassem. Uga não se furtava aos rituais do grupo. Gostava da caça, dos passeios de exploração e da higiene grupal, mas por vezes preferia manter-se um pouco afastado, contemplando as coisas ao seu redor. Isso também não chegava a ser algo estranho, pois seus companheiros por vezes faziam a mesma coisa. Uga porém, costumava ser contemplativo com mais frequência e demora. Passava horas olhando cada detalhe e cada reentrância da caverna, os insetos que com ele dividiam o mesmo espaço, o limo das paredes. As coisas não lhe faziam muito sentido. Seus olhos rodavam de um lado para outro como se buscassem algo novo nos detalhes que já contemplara dezenas e dezenas de vezes. Chegava às vezes a se levantar para tocar uma lasca de pedra ou uma folha trazida pelo vento, talvez na esperança de encontrar um alívio para aquele desconforto que lhe perturbava a mente. Era uma sensação estranha, sem sentido, como se algo invisível estivesse a lhe chamar. Invariavelmente acabava vencido pelo cansaço inexplicável e dormia.

Foi em uma dessas vezes que Uga descobrira o filete de água na fenda. Nesse dia ele experimentou uma emoção que jamais havia sentido antes, uma sensação de poder inexplicável. Não era o regozijo pela água, pois esta nunca lhe faltara. Era a descoberta em si que lhe inspirava aquele sentimento e emoção. Era como se Xuhá houvesse lhe transferido parte de seus poderes. Foi esse fato que deu a Uga a liderança do grupo. Seus amigos passaram a vê-lo como um protegido do Deus e a respeitá-lo por isso. Mas agora Xuhá parecia tê-los abandonado. Uga sentia suas forças se esvaírem e sua fé em si próprio estava abalada. Sentia-se um pouco culpado. Talvez tivesse feito algo que desagradara ao Deus das águas. Não conseguia imaginar o que pudesse ter sido e isso o torturava mais ainda.

O grupo ainda permanecia unido, pois, instintivamente, eles percebiam que essa era a única forma de poderem vencer os intrusos e sobreviverem. Mas os ânimos andavam péssimos, as brigas eram constantes e Uga já estava começando a perder o controle. Sua autoridade estava sendo posta em dúvida. Era exímio caçador e hábil no manejo do tacape, mas isso não era o bastante para o grupo. Buga também era hábil e bem mais forte, assim como alguns outros. Felizmente para Uga, apesar das adversidades, Buga mantinha-se fiel amigo. Isso lhe trazia certo reconforto. Uga desejava a volta de Xuhá, seus instintos lhe diziam que isso era necessário, mas ao mesmo tempo tinha medo. Era um medo que Uga conhecia muito bem, já o experimentara várias vezes antes. Xuhá invariavelmente brigava com Klabum, que na ira lançava do céu acinzentado enormes tacapes de fogo.

O barulho era ensurdecedor e reduziam o alvo à uma massa negra e disforme. Claro que todos tinham medo de Klabum e o respeitavam. Mas no caso de Uga a coisa era diferente e ele sabia disso. Uga sentia medo e ao mesmo tempo uma atração quase irresistível pelos tacapes de fogo. Por vezes chegara a sentir um impulso quase incontrolável de ir ao encontro deles. Isso o apavorava ainda mais, pois sabia que se ousasse empreender tal façanha, seria morte certa. Uga não entendia aquela atração sem sentido pelos tacapes de Klabum. Algumas vezes seu íntimo parecia dizer-lhe que, da mesma forma que Xuhá, Klabum também queria agraciá-lo com poderes. Noutras, tamanha era a fúria do Deus, que Uga tinha a sensação nítida e clara de estar sendo chamado ao castigo pelos desejos heréticos e absurdos.

Foi justamente no torpor desses delírios que Uga foi bruscamente acordado. O estrondo foi fenomenal. Uga não sabia há quanto tempo estivera imerso naquele transe sufocante. Apesar de escuro, tinha certeza de que ainda era dia; seus instintos lhe diziam isso. Klep havia sumido do céu, agora totalmente recoberto por manchas quase negras e ameaçadoras. Klabum urrava de modo ensurdecedor e medonho. Seus tacapes de fogo caiam ao longe, bem para além da grande água. Desta vez parecia que Klabum viera sozinho, sem a companhia de Xuhá, dando a impressão de estar ainda mais irado por causa disso. Seus tacapes faiscantes caiam sem parar e cada vez mais perto. Uga postara-se estarrecido e imóvel à entrada da caverna. Mal saíra de um transe para cair em outro, desta vez muito mais poderoso.

A cada ribombar de Klabum, o chão tremia. O grupo todo já havia saído daquele torpor sonolento e se amontoavam uns sobre os outros, estarrecidos com a figura absurda de Uga na entrada da caverna. Foi nesse momento que uma faísca atingiu o monte de tacapes e resto de galhos secos próximo à caverna. A intensidade da luz deixou Uga cego por um instante. O estrondo foi tão forte que o lançou violentamente para o fundo da caverna, deixando-o atordoado. Seus amigos não ousaram socorrê-lo, pois julgavam tratar-se de um castigo do Deus e se encolheram mais ainda. Ainda zonzo e como se estivesse a desafiar Klabum, Uga se levanta, permanecendo imóvel a observar o fogo que ardia a poucos passos da caverna. Um sentimento estranho se apoderara dele. Algo que lhe escapava à compreensão, como se uma força mágica tivesse tomado conta do seu ser. Sua cabeça latejava como se estivesse prestes a explodir. Não sabia se estava sonhando ou se estava acordado, de repente, pareceu-lhe que o mundo deixara de existir.

O grupo em volta não ousava interferir no seu transe, julgando-o tomado pelo demônio do fogo. Uga não conseguia ver nada além daquela chama demoníaca que dançava a sua frente e parecia puxá-lo. Os estalidos da madeira queimando soavam como trovões em seus ouvidos, pareciam marcar um compasso de tempo, uma cadência sem sentido onde, a cada explosão imagens desconexas de animais amedrontados e cavernas de paredes brilhantes surgiam em sua mente.

Movido pelo impulso incontrolável e mágico, começou lentamente a se mover em direção ao fogo. Cada passo lhe parecia uma eternidade. Era um misto de fascinação alucinada e pavor entorpecente. A cada novo passo, o pavor ia cedendo lugar à fascinação mágica. Lentamente foi se aproximando até que se deu conta de estar praticamente ao lado da fogueira. Podia sentir o calor suave do fogo, percebendo que o mesmo não queria lhe fazer mal. Reconheceu seu tacape em meio aos outros já quase que totalmente consumidos. Estava ainda quase inteiro, só com a ponta dominada pela chama bruxuleante. Foi lentamente se abaixando até tocar o cabo do instrumento. Estava apenas morno como costumava ficar quando exposto ao calor de Klep. Podia segurá-lo sem o menor perigo. Ajustou sua mão a ele, apertando-o firmemente e erguendo-o sem pressa. Já em pé não se conteve. Seu sentimento de poder era imenso e não cabia mais em seu peito. Soltou um urro, um brado de vitória que jamais se imaginara capaz. Era um Deus!

[versão original Mar/2000]

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