Um conto Espírita (Partes IV e V)

por Carlos Alberto Iglesia Bernardo

 

Um Conto Espírita (IV)

Sinhô Doutor

Sinhô Doutor era assim chamado por ser o único advogado que morava nas redondezas, muito requisitado nas questões jurídicas que surgissem naquele recanto rural e respeitado por todos.

Advogado mais por ambição que por vocação, com um entendimento muito particular de suas obrigações, era exímio em manejar a lei em favor de seus próprios interesses. Atendia preferencialmente os grandes proprietários de terras, em suas querelas com os vizinhos e posseiros. Sabia como ninguém garantir a posse de uma propriedade irregular ou desalojar um pobre coitado sem título de posse.

Entre seus clientes, havia um porém, Nhô Bento, que pouco trabalho e rendimento lhe trazia. Fazendeiro e homem de negócios extremamente correto, só recorria ao advogado quando realmente necessitava de ajuda legal na elaboração de um contrato ou no desenrolar de suas transações comerciais.

A ocasião chegou para o Sinhô Doutor, quando Nhô Bento lhe pediu para localizar seu único parente restante. Era o filho de um primo que havia deixado aquelas paragens pela cidade grande e que agora deveria estar moço.

Nhô Bento começava a sentir a idade e queria se aproximar do parente para conhece-lo melhor e, quem sabe, passar-lhe a gestão de seus muitos negócios.

Sinhô Doutor se incumbiu da tarefa, mas, aproveitou para descobrir o ponto fraco do moço. Este era ganancioso ao extremo. Fácil foi induzi-lo a tomar a tutela da fortuna, naturalmente mediante régia remuneração para si mesmo.

Ele só não previa que a ganância do jovem levaria à tragédia. Percebeu rapidamente o que aconteceu quando Nhô Bento foi encontrado morto, estraçalhado por um mastim da fazenda.

Mediante nova remuneração ajeitou a situação, o incidente foi convenientemente registrado como infeliz acidente e qualquer suspeita abafada rapidamente. Foi ele inclusive que insistiu para que o mastim fosse imediatamente sacrificado, pois notou que ele era muito bem treinado e, caso outros percebessem isso também, poderiam surgir complicações para manter a versão contada.

Ganhou muito com este desonroso negócio, mas, se dele lembrava, era como uma nota de rodapé, de somenos importância, na brilhante carreira que imaginava para si mesmo. Perdeu o contato com o herdeiro de Nhô Bento, quando, algum tempo após herdar a fortuna, este deixou de ser um de seus clientes habituais. Sabia que ele havia se arrependido e, castigado pelo remorso, virará filantropo. Mas, Sinhô Doutor, jamais se arrependeu.

A morte o encontrou assim, muitos anos depois, sem remorsos e com a consciência adormecida. Se a morte o encontrou, não o fez o descanso eterno.

Atormentado por suas visões interiores, quase que demente, vagou muitos anos pelas paisagens sombrias dos planos espirituais mais inferiores. Andanças que um dia o levaram a cair extenuado e, num relance de lucidez, finalmente lembrar-se de que Deus existe.

Súplica ardente e sincera ao Altíssimo, imediatamente é respondida por latidos ao longe. Mais um pouco e prestimoso mastim se aproxima. Rapidamente o mastim afasta os vultos tenebrosos que tentavam arrastar Sinhô Doutor para longe dos socorristas.

Chegam então luminosos seres, guiados pelos latidos, que o recolhem em providencial maca. Ele percebe vagamente que o carregam por pequena distância e daí o colocam em um dos veículos de um longo comboio. O mastim, que o segue até o momento em que a maca é recolhida no veículo, estranhamente lhe parece familiar.

Começa então para o Sinhô Doutor o longo caminho de retorno ao cumprimento das Leis Divinas.

Um Conto Espírita (V)

Reencontro

Todos rodeiam e cumprimentam Flávio. Ele está imensamente feliz. O ambiente é de festa, a reunião espiritual foi um sucesso e os últimos detalhes para sua volta ao plano terreno acertados.

Realizada no modesto salão do pequeno centro espírita do bairro, contou com a presença dos irmãos encarnados através do desdobramento pelo sono físico. João e sua esposa, dois frequentadores do centro, aceitaram receber Flávio como filho. Pedro, o fundador do grupo e médium, aceitou o compromisso de guiar seus primeiros passos na Doutrina.

Flávio, um dos guias da casa, espírito de luz há muito, retornará as lides terrenas para ajudar seus três filhos de uma encarnação passada. Então, nas Gálias, ligou-se ao Cristianismo nascente, mas, incompreendido pela família e pelos amigos, teve que renunciar à sua posição social e até mesmo à sua vida, coroada pelo martírio em testemunho de sua fé.

Seus antigos filhos, fugindo de toda orientação que procurou lhes dar desde então, lançaram-se à toda sorte de desacertos e, por várias existências, comprometeram-se com as leis divinas.

Agora, pela primeira vez, as perspectivas são outras, sob os nomes de Pedro e João, dois deles se encontram decididamente no caminho do bem e o terceiro, começa a abrir-se para o arrependimento. Seus últimos erros, como Sinhô Doutor, o colocaram em uma situação de extrema penúria espiritual, mas, por outro lado, o sofrimento decorrente, quebrou-lhe finalmente a casca de orgulho e indiferença pelo próximo com que se cobria há séculos.

Sinhô Doutor, agora um pobre demente abrigado na instituição fundada por Pedro, está prestes a desencarnar. Ficará algum tempo na instituição espiritual a qual o centro se encontra ligado e retornará ao corpo físico assim que Flávio, reencarnado, estiver casado e pronto para acolhê-lo novamente como filho.

João e Pedro perdoaram Sinhô Doutor. O primeiro lhe será avô carinhoso no futuro e o outro o receberá também na escola dominical para o aprendizado do Evangelho de Jesus.

Flávio sai sorridente do salão e procura seu fiel companheiro, que deveria estar aguardando do lado de fora. Olha para todos os lados e finalmente o vê.

É uma cena engraçada. Totó, desencarnado há alguns dias, está correndo e pulando alegremente em torno de João e Pedro. O grupo de espíritos que os levavam de volta aos seus lares, teve  que parar para dar-lhes oportunidade de brincar com o cão.

Não há dúvidas, ele vai pedir autorização para que Totó volte mais uma vez com eles ao plano físico.

Este cão tem sido seu companheiro tantas vezes que Flávio nem sabe mais dizer como os laços que os unem começaram. Há outros animais aos quais Flávio dedica sua atenção, inclusive como responsável pelas caravanas socorristas da instituição nos planos inferiores da espiritualidade, que contam sempre com a escolta de uma valorosa matilha.

Mas, Totó é especial. No momento crucial da vida de Flávio, quando vieram buscá-lo para o martírio, lá estava ele e foi o único que se levantou em sua defesa. Tentativa inútil, prontamente anulada pelas lanças dos legionários, mas, Flávio jamais se esqueceu da cena e a gratidão que sente ainda é a mesma que sentiu naquele momento longínquo no tempo.

Flávio, parado na porta do centro, contemplando a alegre algazarra criada por Totó, João e Pedro, não pode deixar de elevar o pensamento em gratidão ao Criador.

Volta-lhe a memória neste instante também o ponto culminante de outra encarnação. O momento em que, andando despreocupado pelos campos, deparou-se com a cena de um homem pregando a boa nova do Reino dos Céus aos animais silvestres que o cercavam.

Foi com Francisco de Assis que aprendeu que todos os seres da Criação são nossos irmãos.

Muita Paz,

Carlos A. I. Bernardo

 

 Fonte: Sinhô Doutor – L´Avenir (educacao.ws); Reencontro – L´Avenir (educacao.ws)

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