por Nubor Orlando Facure.
Ainda trabalhando aos 84 anos, consegui completar os meus 60 anos de medicina.
Acumulei uma imensa dívida de gratidão a muitos que cruzaram minha vida orientando e amparando-me.
Penso até, que precisaria outros tantos anos para os agradecer a essa multidão de Almas que chamo de protetores.
Guardo comigo os momentos de apreensão dos meus pais desde o vestibular. O companheirismo do Dr Jorge em décadas de parceria no trabalho e da Glenda um dos esteios fortes que amparou continuamente os nossos pais.
Foi muito marcante na minha caminhada a presença constante da minha esposa Lourdes, enfermeira de tantas cirurgias e o convívio carinhoso com os filhos, netos e bisnetos.
Na faculdade convivi com colegas de valor inestimável. Alguns deles eram espíritas e frequentávamos juntos o Centro Espírita Uberabense: Waldo Vieira, Marlene Rossi, Elias Barbosa e Adroaldo Gil.
Estava no segundo ano (1960) quando conheci o José Américo Junqueira de Matos que cursava o quinto ano. Ele me levava a tardezinha para visitar gente paupérrima e frequentemente acamada num bairro extremamente pobre, chamado Coréia em referência a uma guerra da época. Aprendi com o José Américo a dar atenção e amparo a essas pessoas desprovidas de tudo.
Aproveitei essas orientações e aos domingos de manhã passei a fazer atendimento ambulatorial na Igreja Nossa Senhora da Abadia, padroeira de Uberaba e na igreja ao lado do colégio Diocesano – Uberaba sempre foi uma cidade ecumênica – alguns iam sexta-feira à noite no Chico Xavier e domingo na missa.
Quase nada sabia de Medicina, mas foi ali naqueles ambulatórios da igreja que desenvolvi minhas habilidades de ouvir e consolar.
Acumulei tanto aprendizado quantas foram as aventuras que vivi.
Na neurocirurgia é preciso nos acostumar com as vitórias, os insucessos, as decisões que ficam entre a vida e a morte, a expectativa prolongada aguardando os resultados, as condutas inspiradas mais na intuição que na experiência e a certeza de que a fronteira do impossível ultrapassávamos várias vezes.
Nossa Faculdade era um belíssimo casarão onde funcionava a cadeia pública de Uberaba até o início dos anos 60.
A reconstrução da escola foi dirigida pelo prof. Mauritano que nos ensinava fisiologia sob grande pressão emocional.
Ele era um desses professores que marcavam as provas sem avisar, provocando alvoroço entre os alunos.
Não preciso dizer mais nada para ilustrar nossa ansiedade nessas arguições.
Dr Francisco Guerra, outro grande professor e amigo, era possuidor de muito talento e de uma personalidade forte. Iniciou- me na neurocirurgia desde o segundo ano da Faculdade. Aproveitei muito da sua inteligência brilhante, da sua criatividade e da sua mente desafiadora.
Dr João Gilberto do Hospital São José, ensinou-me o raciocínio rápido na cirurgia abdominal.
Dr Hiroji e Dr Wandir desenvolveram-me o espírito prático no estilo: pau para toda obra.
A partir de 1963, ainda aluno em Uberaba, comecei a fazer os cursos do HC em São Paulo. Eletrocardiograma com Dr Tancresi e cirurgia vascular com Professor Pontes.
Prof Cutait que nos mostrava os intestinos como quem veste uma camisa.
Prof Edmundo Vasconcelos com seus famosos assistentes que se levantavam assim que o professor Edmundo entrava na sala de aula. Tudo isso em respeito ao brilhantismo do mestre.
Professor Edmundo desenhava na lousa as figuras do estômago ou pulmões com giz de cor usando as duas mãos.
Não era exibicionismo, era talento artístico.
Assistíamos as suas cirurgias e ele nos desafiava a ver uma única gota de sangue no campo operatório enquanto ele operava.
Fiz um ano de internato na magnifica Santa Casa de Santos que na época, 1964, tinha quase 900 leitos.
Nesse hospital encontrei dona Lourdes enfermeira chefe no segundo andar da Ala D, onde me escalaram para morar por um ano – não foi coincidência, foi um projeto divino.
Depois voltei para o HC de São Paulo em janeiro de 1965.
Buscava minha formação definitiva em neurocirurgia com o Professor Rolando Tenuto, um dos homens mais formais e cavalheiros que conheci.
No Pronto Socorro do HC atendíamos até 50 pacientes com trauma de crânio por dia. De madrugada, a exaustão era tanta que operávamos sozinhos, sem anestesista, só com a circulante de sala, sem outro médico com forças para vir nos ajudar.
Tive no HC um convívio forte com o Professor Spina-França (exame de Liquor), Lamartine de Assis(Miastenia gravis) Levi (Miopatias) Luiz Assis ( Epilepsia) Horácio Canelas ( Doença de Wilson), José Zaclis (Neurorradiologia) Antônio Lefevre (Neuropediatria), Walter Pereira (Neurocirurgia de urgência), cada um deles expoentes em suas áreas.
Como os caminhos da vida são escritos por mãos que não enxergamos, vim em julho de 1966, para Campinas onde a Faculdade de Medicina da UNICAMP iniciava sua terceira turma.
Ali dei aulas por 30 anos.
A Neurologia era dirigida pelo Prof. Oswaldo Julião a quem substituÍ em 1973.
Chefiei o Departamento de neurologia por quase 13 anos.
Minha primeira cirurgia em Campinas, como não podia deixar de ser, marcou-me para sempre.
Um pai de família sentado na mesa de jantar com a esposa e um casal de filhos entra de repente num surto psicótico.
Pega um martelo e bate com violência na cabeça da esposa e dos filhos.
As marteladas foram 6 ou 7 em cada um.
Fazia um pequeno afundamento arredondado como a cabeça do martelo.
Passei a madrugada toda consertando o estrago com tantos cortes quantas foram as marteladas.
Aí a notícia foi para os jornais e eu comecei a ficar conhecido na cidade.
Humildemente costumo repetir o que me diz minha esposa.
Não me tornei um médico famoso, ela diz que sou é popular, tantas são as pessoas que me abraçam no Shopping onde alguns chegam a me consultar perguntando se podem diminuir aquele comprimido rosinha do remédio da noite.
Sempre digo em minhas orações: obrigado meu Deus pelo privilégio da trabalhar na neurocirurgia.
Não tem o que se compare com tudo que aprendi sobre o cérebro.
Nuca confiei muito nos computadores mantendo sempre o costume de fazer por escrito meus prontuários.
Por isso, posso dizer ter completado mais de 240 mil atendimentos nesses quase 60 anos. Estou dentro da média dos antigos médicos da minha idade que poderia registrar trajetórias mais ricas que a minha.
Frequentemente leio nos textos do Facebook alguém me agradecendo.
O senhor salvou a vida do meu pai, da minha mãe ou de um filho.
A noite eu sempre peço perdão para Deus: não fui eu que assumi o Seu lugar, Senhor.
É o carinho deles que me confundem.
PS:
Da nossa turma de 50 alunos talvez estejam entre nós cinco ou seis, dois deles tenho notícias: Dr Carlos Cesar Vanucci chefe da anestesia no Hospital do Câncer (Dr Hélio Angoti) em Uberaba e Dr Nelson Brandalise cirurgião abdominal e diretor no Centro Médico de Campinas.