Polêmica sobre A Gênese, a perfectibilidade das raças, a maçonaria, os 50 cadernos e a Revista Espírita

por Pedro de Campos

 

Essas questões foram tratadas nas reuniões virtuais do Grupo de Estudos Avançados Espíritas com a participação de profissionais de várias áreas acadêmicas do Brasil e do exterior nos dias 28 de julho e 8 de setembro de 2024. O autor fez palestras virtuais com ilustrações mostrando a vida do Cidadão Rivail e abriu ao público para perguntas.

por Pedro de Campos

Após o falecimento de Allan Kardec um novo chefe do Espiritismo foi empossado e deu continuidade às ações institucionais que se propagaram formando a importante história do movimento espírita, mas não da vida do codificador nem da doutrina que codificou, razão pela qual o extenso trabalho biográfico no livro, Cidadão Rivail – raízes e vida de Allan Kardec, não adentrou ao período póstumo, salvo em casos esparsos cujos argumentos iniciais exigiam complemento. Mas isto não significa que a opinião do autor sobre fatos posteriores a Kardec não deva ser externada ou que a história do movimento espírita não deva ser contada. Nas palestras realizadas, o autor respondeu perguntas sobre temas polêmicos após a passagem do codificador. Aqui vamos destacar algumas delas.

1. Fala-se hoje que o livro A Gênese teria sido adulterado após a desencarnação de Kardec. Como considera essa censura acusatória, tal desunião é prejudicial à doutrina?

Campos. Nos tempos atuais, alguns pesquisadores afrontaram essa questão. De modo pessoal, temos acompanhado o movimento espírita desde meados da década de 1960. Na época, falava-se da mensagem mediúnica de 22 de fevereiro de 1868, estampada em Obras Póstumas, na qual o Espírito aconselhava-o a trabalhar na revisão do livro A Gênese, publicado no mês anterior; depois, soube-se que os acertos foram feitos na 5ª edição, após o seu desencarne. Tinha-se então que lhe restava pouco tempo de vida e o mentor lhe sugeria pressa nas alterações. Kardec queria manter sempre os seus livros alinhados e mexer nas matrizes gráficas era trabalhoso. Tais alterações foram bem acolhidas no meio espírita, porque era comum a Kardec preparar antes e fazê-las imprimir depois, mas não tivera tempo de dá-las a público, pois desencarnou. Muito depois, o ilustre Canuto de Abreu, depositário de documentos do codificador, tratou rotineiramente questões intricadas com Chico Xavier e o Espírito Emmanuel, sabia de temas espinhosos e tinha proximidade com tais expoentes do Espiritismo para orientação. Assim, se Canuto não divulgou certas novidades, nos é lícito pensar que não considerava oportuno fazê-lo, porque há feitos cuja divulgação mais perturba do que harmoniza. Tudo deve ser avaliado antes, para não criar impasses que apenas promovam perdas e desunião.

2. Lançar livro divergindo de alguns feitos é uma coisa, mas uma instituição lançar uma edição de obra básica contrapondo a outra é faccionar a doutrina. Estamos diante de um fato consumado e nas livrarias tem-se em disputa a primeira e a quinta edição de A Gênese. Qual das duas os centros espíritas e os adeptos devem escolher?

Campos. Essa é uma questão capital, não de interpretação, porque a própria doutrina parece em alguns pontos incorreta na origem ou no ajuste posterior, ficando à deriva para livre escolha do público. Antes, fora dado que o Espírito e o codificador se ajustavam para revisar a obra, mas não se divulgou o que teria de ser alterado. Assim, a 1ª edição restou, sugestivamente, eivada de algumas falhas e faltas, não havendo hoje como arrumá-la. A 5ª edição, a seu turno, que teria solucionado as pendências, recebe agora acusações de imperfeição por impropriedade do dirigente máximo do Espiritismo na época, P.-G. Leymarie, cuja imprevidência após Kardec se faria notória e a edição veio a público na sua gestão. Embora haja também literatura em defesa, têm-se hoje ao menos duas opções de escolha: a 1ª edição, “imperfeita” na origem e, por isso, comprometida, e a 5ª edição, “duvidosa” até nova aclaração, face às acusações. Enfim, o levante está feito e não se pode execrar A Gênese como obra falha ou desautorizada — seria uma controvérsia irreparável à doutrina. A escolha é apenas decorrente: ou prefere-se a “certeza” das imperfeições que teriam de ser arrumadas e não foram (1ª edição) ou fica-se com a “dúvida” sobre a autoria das correções (5ª edição) até a elucidação oficial. Mais previdente seria um “pacto nobre”, conduzido pela Casa Mater junto às demais instituições para anuência comum de uma só edição.

3. Observa-se hoje na mídia opositores do Espiritismo querendo desgastar a doutrina com inverdades sobre Kardec, atribuindo-lhe discriminação racial. Como vê essa censura?

Campos. Sim, tenho notado tal crítica. O momento sociocultural de hoje enseja essa questão, a qual é incrementada por opositores que buscam desgastar o nome do codificador em benefício próprio ou de uma sigla religiosa. Usam o status cultural do presente para interpretar o passado como se a cultura, os costumes e as leis fossem as mesmas. Na verdade, cada época tem os seus predicados. Do ponto de vista da antropologia física, o conceito de raça nasce na África com o Homem Moderno há milhares de anos, definindo um grupo étnico e dando-lhe um sentido de nação, mas a biologia recente tornou aquele sentido de raça obsoleto, pois a genética atual detectou um DNA comum relativo à espécie. A desigualdade racial, como capacidade intelectiva, é hoje uma crença cultural do passado, pois todo tipo humano alcança o status intelectual elevado. A causa histórica da disparidade cultural das raças é sobretudo econômica, carência de recursos que reduz a sobrevivência, abala o convívio social e atrasa a expansão da cultura. O Espírito, por sua vez, que não tem cor nem sexo, é criado simples e inculto, mas no curso das vidas sucessivas evoluciona encarnando sob diferentes gêneros e raças, quer numa condição social quer noutra, e em cada experiência corpórea, seja numa nação adiantada ou num torrão atrasado, segundo o tipo de prova a experienciar, ele se depura e eleva-se aos poucos até alcançar a plenitude.

4. Poderia nos dar mais detalhes sobre esse ponto de vista econômico que provoca a desigualdade e a sujeição das raças e das nações?

Campos. Nos tempos antes de Cristo, Roma era a nação mais rica e poderosa da Terra, seu império se estendia da Península Ibérica ao Oriente Médio. Seu poder econômico formou uma força militar inigualável. Os espólios de guerra lhe deram riqueza material, tributação compulsória e força de trabalho escravo. Os gregos, em razão da cultura, eram escravizados em Roma para educação das crianças; os germânicos, vendidos como gladiadores, alcançavam maiores preços os brancos de cabelo vermelho, tidos como os mais ferozes; os africanos, de índole branda, eram colocados nas fazendas. O conceito de raça estava ligado à nação, não à cor da pele, mas o tempo passou e Roma caiu. A sociedade avançou e no século XIX os povos europeus, asiáticos e americanos já tinham prosperado, mas ficaram na retaguarda os da América Central e do Sul, da Oceania e da África. Hoje, um sistema de sujeição econômica ainda vigora sob a égide das nações adiantadas, mas num patamar mais humano, dada a evolução do Espírito. Tudo deve ser examinado na conjuntura em que os feitos ocorreram, pois o que era legal e moral numa época, em outra se modifica. Não se pode voltar ao passado e interpretá-lo com a cabeça de hoje, seria uma censura descabida, porque os costumes, as motivações e as leis eram outras.

5. Depreende-se que as diversas raças possuem corpos iguais na essência, mas o evolver de seus valores socioculturais é resultado do poder econômico, cuja escassez as levou a um crescimento geral inferior. A carga do poder econômico retarda a evolução do Espírito?

Campos. Sim, a força do poder econômico fora empregada nas atividades bélicas e tornou-se decisiva para retardar a marcha evolutiva das nações sujeitadas. Não obstante tal freio, a evolução seguiu o seu curso e as nações menos adiantadas avançaram, tendendo a diminuir nessa marcha até a extinção. Projetando nossa visão à Terra futura, digamos um milhão de anos à frente, e seguindo a globalização em curso, vislumbra-se uma mistura de raças cujo resultado seria a homogenesia integral. Neste ponto, haveria o nascimento de um tipo humano genético com caracteres de todas as raças e os vários tipos raciais de hoje ficariam extintos. A seu turno, a evolução espiritual segue sua marcha e processa-se de modo relativo ao meio vivente do encarnado. O que seria de Albert Einstein se em vez de nascer na avançada Alemanha tivesse nascido no território inexplorado do Xingu? Por certo, teria perambulado por aquela região e com sua genialidade se destacado entre os povos originários, mas somente nos limites impostos pela floresta. Todo Espírito, no curso de sua escalada, precisa de experiências novas e variadas, encarna em nações adiantadas, médias e atrasadas, ora num meio social ora em outro, para aprender e evoluir.

6. Há quem diga que na Revista Espírita de abril de 1862, falando sobre a perfectibilidade das raças, Kardec expôs o seu calcanhar de Aquiles. O que pensa sobre isso?

Campos. Não há dúvida sobre o bom proceder de Kardec, seja na vida diária seja na redação literária. Tudo o que realizou no século XIX estava nos preceitos morais e legais daquela adiantada sociedade europeia. Hoje, no século XXI, dada a evolução sociocultural dos povos, os países mais sensíveis ao humanismo aprimoraram suas leis civis do passado e aprovaram normas mais efetivas para afastar todo tipo de prática alusiva à discriminação e ao preconceito. Nisso entra a procedência nacional, a etnia, o fator racial, a cor da pele, o gênero, a idade, a religião, a preferência amorosa e expressões que afrontem tais questões pessoais. Como contrapartida, não se pode criminalizar os feitos do passado que impactem hoje as normas legais e os costumes morais, porque as regras civis do passado eram outras. É preciso entender que as leis não retroagem e quem o faz para ajuizar feitos anteriores posiciona-se à revelia da lei. Em seu tempo, Kardec foi ético em tudo que fez e escreveu, não deixou mácula que desonre a sua pessoa. Não cometeu crime de racismo nem de injuria racial ou qualquer outro. A ferida que a crítica lhe comina não passa de juízo incorreto e injusto, apenas seleciona parte de um comentário e omite o complemento esclarecedor.

7. Há rumores de que Kardec teria sido membro da maçonaria. Seria verdade?

Campos. Há de fato rumores nesse sentido e tratamos isso de modo mais detalhado no livro Cidadão Rivail. No decorrer das nossas pesquisas achamos antecedentes ligando sua família à maçonaria, então fomos tirar a limpo a questão para saber se ele foi ou não maçom. Inicialmente, achamos informes sobre seu avô materno, Benoît Marie Duhamel, que em 1768 estava nos quadros da Loja de São João dos Eleitos de Bourg. Depois, o venerável dessa Loja, Claude-Marie Favier, administrador de Bourg, foi padrinho de casamento de Jean-Baptiste Antoine Rivail, pai do menino Hypolite (Allan Kardec). Todos trabalhavam para o avanço político, econômico e educacional da França, então um país de maioria miserável e analfabeta. Quanto a Kardec, o único vestígio achado foi no Prefácio da primeira edição do livro O Céu e o Inferno, onde usou os termos “o grande Arquiteto” e “a soberana sabedoria”, expressões maçônicas para designar Deus. Esse Prefácio foi retirado da obra em 1869, feito que causou espécie, mas gerou apenas comentários, pois os iluministas e outros filósofos também as usavam, inclusive o grande orador romano Cícero, que as usou antes de Cristo e do surgimento da maçonaria. Assim, não encontramos nada que o ligasse de modo inequívoco a nenhuma Loja maçônica.

8. Gostaria de saber sobre a Revista Espírita. Naquele tempo, além dos números mensais, já havia também volumes anuais disponíveis ao público como há hoje no Brasil?

Campos. A Revista Espírita — Jornal de Estudos Psicológicos teve sua publicação mensal de 36 páginas iniciada em janeiro de 1858, circulou também em outros países e seguiu em frente. Após a desencarnação de Kardec, a 31 de março de 1869, foram estampados ainda três números com notícias sobre o seu passamento, além de homenagens e textos previamente escritos. Ao todo, somam-se 138 números compondo 12 volumes, um para cada ano, encerrando-se em junho de 1869 a fase kardequiana. A revista foi uma tribuna para o leitor falar de suas experiências e um laboratório para o codificador dirigir e avaliar suas pesquisas. Os números dessa fase ainda são estudados como subsídios à doutrina espírita e como parte do processo que dera origem à codificação. Kardec sempre deixou à disposição os números já publicados, para atender os novos leitores e adeptos. Além da venda avulsa, havia também um volume específico para cada ano da publicação. Os informes publicitários dessas edições estão em alguns de seus livros (ver O Livro dos Espíritos, 15ª ed. 1867, p. 475), na Revista Espírita e de modo completo no Catálogo Racional de Obras que Podem Servir para Fundar uma Biblioteca Espírita, um compêndio de 34 páginas lançado em abril de 1869, no qual mostra suas preferências de leitura e recomendações.

9. Poderia tecer comentários sobre os 50 cadernos que Kardec teria recebido em mãos e ensejado seu ingresso para fazer a redação ordenada dos informes espirituais?

Campos. Temos notado o trabalho de escavadores para tirarem a limpo o informe de Henri Sausse sobre os 50 cadernos recebidos por Kardec. Sistemas foram construídos para identificar os grupos e os pesquisadores que teriam colhido tais informes. Os nomes aventados foram homens de cultura, podiam fazer anotações próprias, recolher informes mediúnicos nas reuniões e, na informalidade, compartilhar suas páginas com outros. É certo que, em 1855, Kardec esteve no meio deles, fazendo seus estudos iniciais e colhendo detalhes. Mais tarde, em janeiro de 1858, no primeiro número da Revista Espírita, escreveu o artigo “O Livro dos Espíritos — Apreciações Diversas”, no qual agradece a todos que se associaram na execução do livro inaugural. De nossa parte, não colocamos dúvida sobre Sausse ter publicado um informe que recebera de algum coevo de Kardec, tido como confiável. Sabe-se que o codificador teve contribuições, debruçou-se em estudos e pesquisas, mas não se sabe o que teve em mãos e o quanto usou de tais aportes. Na 2ª edição de O Livro dos Espíritos fez estampar na capa um adendo: “Com a ajuda de diversos médiuns”, pois era inviável isolar os casos e mencionar os nomes, mesmo porque o livro era dos Espíritos, não dos médiuns. Hoje, a curiosidade de saber até que ponto é verdadeiro o informe dos 50 cadernos em nada aumenta ou diminui o valor de Kardec nem o da doutrina, trata-se apenas de escavação das origens que sugere possibilidades, mas do fato em si nada prova. De nossa parte, o que retemos está em Cidadão Rivail.

O autor é espírita, prospector biográfico e ufólogo congressista, escreveu vários livros, dentre eles “Cidadão Rivail — Raízes e Vida de Allan Kardec” (Ed. O Clarim).

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