Entre 1853 e 1855, o Prof. H.L.D. Rivail ouviu falar pela primeira vez dos fenômenos das mesas girantes que estavam ocorrendo em muitos locais de Paris. Como estudioso do magnetismo, ele comentou com um amigo que a movimentação de corpos inertes poderia ocorrer por uma ação magnética devidamente aplicada por um magnetizador. A conversa evoluiu para a possibilidade de a mesa também responder a perguntas corriqueiras, e mesmo, formuladas em pensamento. De imediato, o prof. Rivail não se interessou pelas mesas girantes, mesmo diante do entusiasmo dos amigos, já que para um homem de educação e ciência, isso seria impossível, dado que uma mesa não tem cérebro para pensar. Entretanto, no ano seguinte em nova oportunidade, ele aceitou o convite de seus amigos Marc Carlotti e Léon Pâtier para participar de uma dessas reuniões na casa da Sra. Jeanne Elisa Laroche Plainemaison1. Ao identificar a seriedade e comprometimento do grupo com os trabalhos, excluindo qualquer possibilidade de fraude, tornou-se um novo homem. Sentiu um impulso fulminante em observar, estudar e pesquisar a comunicabilidade dos Espíritos entre os mundos visível e invisível.
Foram cerca de quinze meses de intensa atividade trabalhando todos os dias até altas horas da madrugada, comprometendo inclusive com a sua saúde. Todo material que ele obteve em diversas reuniões pelas psicografias com médiuns sérios, era separado e ordenado em tópicos com títulos e subtítulos. Com os relatos obtidos pessoalmente e por correspondências, novos assuntos eram levados às reuniões para explicações, esclarecimentos e aconselhamentos dos Espíritos.
Com a vasta documentação obtida sobre a relevante relação da vida antes e após a morte, o Prof. Rivail se viu diante de uma nova fase da humanidade — a do avanço no conhecimento da Verdade com significativo efeito para a melhoria da vida na Terra e sua implicação futura. Com o progresso do trabalho realizado, ele percebeu a necessidade premente da edição de um livro, adotando a forma de escrita como diálogo — método de aprendizagem em que um professor força o aluno a raciocinar a cada abordagem realizada. O manuscrito ganhou corpo com perguntas criteriosamente elaboradas e com as respostas obtidas dos Espíritos por diversos médiuns, sendo comparadas e analisadas pelo crivo do senso crítico da razão. Assim, o livro foi concluído, mantendo um encadeamento lógico de assuntos de interesse geral até a conclusão final (epílogo). Mas, qual seria o nome indicado para toda essa filosofia de vida, ciência e com aspectos morais em implicações religiosas? Um livro do desconhecido? Um livro da além-vida? Um livro de outro mundo? Não! Um livro escrito pelos Espíritos, definido como “O Livro dos Espíritos”. De fato, o Prof. Rivail coordenou todo o trabalho de compilação das informações vindas do plano espiritual e, mesmo as suas considerações, passaram pelas considerações da autoridade espiritual superior, o Espírito da Verdade.
Com o lançamento da primeira edição do “O Livro dos Espíritos” em Paris, França à 18 de abril de 1857, nasce Allan Kardec, pseudônimo adotado pelo prof. Rivail. Inicialmente o livro foi estruturado em três partes contendo 501 perguntas, tendo a sua abertura com uma Introdução, Prolegômenos, seguido do Livro Primeiro — Doutrina Espírita; Livro Segundo — Leis Morais; Livro Terceiro — Esperanças e Consolações e o Epílogo. No entanto, a ampliação do material com estudos e pesquisas constantes e o rápido esgotamento da primeira edição, levou Kardec a rever pontos de duplicidade de informação, adicionar novos tópicos e reestruturar o livro, sempre sob orientação da equipe espiritual. Surgiu então, a segunda edição em março de 1860, anunciada na Revista Espírita como inteiramente refundida e consideravelmente aumentada, tornando-se a edição definitiva. O número de perguntas mais que dobrou passando a ter 1019, além de questionamentos complementares em algumas delas.
O livro ganhou uma relevante introdução geral abordando tópicos essenciais ao entendimento preliminar do espiritismo, intitulado: “Introdução ao estudo da doutrina espírita”. Com isso, ela prepara o leitor para adentrar em assuntos obscuros ao seu conhecimento, despertando e aguçando o seu interesse numa atmosfera de reflexão que se forma lentamente, principalmente naqueles livres de preconceitos, os quais atuam com a mente aberta na busca do conhecimento da vida. Em seguida, apresenta os “Prolegômenos” com breve esclarecimento sobre como a obra foi desenvolvida, anunciando a chegada de novos tempos com o compêndio dos ensinamentos dos Espíritos e finalizado com a nomeação de alguns Espíritos da equipe, renomados conhecidos da história da humanidade. Dentro do tema central surgem: o Livro Primeiro — As causas primárias (quatro capítulos); o Livro Segundo — O mundo Espírita ou dos Espíritos (onze capítulos); o Livro Terceiro — As Leis Morais (doze capítulos); o Livro Quarto — Esperanças e consolações (dois capítulos) e a Conclusão.
José Herculano Pires, quando da tradução do Livro dos Espíritos (Edicel, 3ª ed., 1982) enfatizou as suas características diante do mundo fragilizado pelo desconhecido, dizendo:
Este livro restabelece a unidade do conhecimento em plano mais alto. Fé e razão se harmonizam em suas páginas dando-nos a tríplice estrutura da doutrina espírita como ciência, filosofia e religião. A antropologia espírita, que se funda na mediunidade, mostra-nos a evolução cultural a partir das religiões primitivas e a desenvolver-se através da mitologia e da mística como um processo natural regido pela lei de adoração. A dicotomia mítico-teológica que nos apresentava o mundo dividido entre o sobrenatural e o natural foi dialeticamente superada. A concepção espírita é monista. O sobrenatural é apenas o natural não conhecido, não explicado. As leis de Deus não são somente as leis morais, mas também as leis físicas, e aquelas não são mais do que a sequência evolutiva destas. “Tudo se encadeia no universo”, repete constantemente este livro 2.
Antes de se designar com um nome próprio qualquer na Terra em função dos aspectos culturais diversificados, o Homem é um Espírito. Na pergunta número 76 temos: — Como podemos definir os Espíritos? Resposta: — Podemos dizer que os Espíritos são os seres inteligentes da criação. Eles povoam o universo, além do mundo material. Essa resposta coloca a reflexão de que o Espírito vive eternamente em mundos físico e espiritual em todo o universo. Aqui a ciência caminha ainda para a desvendar a matéria escura e a energia escura — invisíveis — compondo a grande maioria do universo observável (ao redor de 95%)3.
Assim, este não é um livro para ser apenas lido, e sim, para ser estudado. No caminho da evolução espiritual, o Espírito segue sua jornada abrindo novas fronteiras à medida que amplia a sua compreensão do moral e do intelectual. A prática das ações promove melhores dias, já que a evolução é eterna. Daí se diz: “Espíritas amai-vos primeiramente e instruí-vos”. Isso significa que a reforma íntima da moralidade, seguindo os passos do Mestre Jesus é o primeiro mandamento para atingir uma evolução mais rápida engrandecendo a razão, mas a evolução intelectual acende a luz nesse caminho, guiando para fortalecer a Fé, tornando-a inabalável.
Seguir a lei de Deus é manter-se dentro dos propósitos de equilíbrio e harmonia universal. E como seguir dentro da lei de Deus? A pergunta 621 do livro é fundamental: “Onde está escrita a lei de Deus?” A resposta concisa é a chave adequada: “Na consciência”. Isso ensina o Homem de que não há como fugir do erro, do egoísmo, da vaidade e todos os meios de inferioridade pois ele, agindo assim quebrará a lei de Deus, que está dentro da sua própria consciência. Da mesma forma, a beleza da gratidão eterna pela ajuda ao próximo sempre estará contemplada na lei de Deus dentro da sua consciência, promovendo maior felicidade a cada ação justa e boa, rumo à felicidade plena.
A credibilidade do trabalho realizado por Kardec — com todo o apoio do plano superior maior — é atestada pelo relevante acervo deixado além das cinco obras básicas da codificação espírita. Como editor-chefe, publicou mensalmente e interruptamente a Revista Espírita desde 1858 a 1869.— 136 volumes — constituindo um acervo literário total de 153 obras — ou mais? —, além de outras não catalogadas4.
O Livro dos Espíritos é um livro único e fundamental, sendo um marco da doutrina espírita; contém ensinamentos que permanecem e permanecerão essenciais para a evolução espiritual maior da humanidade. Muitas outras questões podem ser pertinentes em relação aos assuntos abordados, mas por mais relevantes que as possam ser, não serão aplicáveis ao contexto geral do livro original e não surgirá outro que possa substituí-lo em seus princípios básicos, pois constituem a realidade da vida.
Que Deus em sua bondade suprema permita que os ensinamentos desse maravilhoso livro — que são os mesmos do mestre Jesus elucidados em novos tempos — sejam acessíveis a toda a humanidade em menor tempo possível para a regeneração do planeta com a humanidade vivendo em paz, mais justa, mais harmoniosa e mais feliz!
Referências:
1BASTOS, C. S. Espíritos sob investigação: resgatando parte da história. São Paulo: CCDPE-ECM: 427 p. 2022.
2KARDEC, A. O livro dos espíritos: 3ª Ed., São Paulo: Edicel, 1982. 404 p.
3ARANTES, J. T. “O que sabemos do Universo? Sabemos que está se expandindo cada vez mais rápido”, diz Nobel de Física. São Paulo:Agência FAPESP, 2022. Disponível em: <https://agencia.fapesp.br/o-que-sabemos-do-universo-sabemos-que-esta-se-expandindo-cada-vez-mais-rapido-diz-nobel-de-fisica/39644/>.
4FRANZOLIN NETO, R. A vida e obra de H. L. D. Rivail e Allan Kardec. J. Est. Esp., v. 8, n. 010208, 2020. Doi: 10.22568/jee.v8.artn.010208]
O autor é escritor espírita e editor-gestor do Grupo de Estudos Avançados Espíritas – GeaE, o primeiro grupo espírita da internet: www.geae1992.com.br
Fonte: Artigo originalmente publicado em Revista Internacional do Espiritismo, Janeiro de 2024, pag. 608-610.