por Carlos Alberto Iglesia Bernardo
Em uma manhã de início de inverno, com a neblina cobrindo as colinas e escondendo o grande rio dos tempos árabes – o famoso Guadalquivir – tive a oportunidade de caminhar por ruinas singulares, alicerces e restos de construções, que despojados através dos séculos de seus mármores e mosaicos, apenas deixam entrever suas glórias passadas.
Somente através da imaginação pode-se, em meio a tal desolação, rever-se a “Cidade da Flor” – Medinat al Zahara – esplendorosa homenagem a favorita de um dos homens mais poderosos de sua época. Al Zahara, “A Flor”, inspirou a cidade califal de Abd Al Rahman III, senhor de Al Andaluz, a Espanha árabe medieval, cuja corte rivalizava com Bagda e com Bizâncio, os centros mais adiantados do mundo de então.
Símbolo uma vez do orgulho e do poder de uma civilização já desvanecida, símbolo hoje da fragilidade do poder e da glória humana. Onde estão hoje seus orgulhosos ocupantes, seus guerreiros e sábios ilustres, médicos e astrólogos, a infinidade de seus escravos e serviçais. O próprio povo que obedecia às ordens do tenente de Deus, sucessor de Maomé, hoje não mais anda por estas terras, expulso e esquecido nas voltas que a história dá.
Que adiantou aos homens tantas façanhas guerreiras, tanto sacrifício, tanto vaidade se o tempo, verdadeiro agente de Deus na transformação das almas, mostraria quão precários são os poderes humanos. Que levaram para a eternidade os que aqui viveram? Para Abd Al Rahman – que Deus ilumine seu espírito, onde quer que agora esteja – além do bem que possa ter feito a seu povo, que mais lhe valeu tal grandiosidade transitória?
Quanto sua alma não deve ter lastimado as lágrimas vertidas pelos escravos, os sofrimentos de seus prisioneiros, as dores das ocupantes forçadas de seu harém?
Quantas existências o ilustre Califa deve ter gastado reparando vidas perdidas em meio as riquezas de seu reinado? Quanto bem poderia ter feito se revertesse sua fortuna e prestígio para finalidades mais duradoras, quanto não teria sido mais útil direcionar os impostos para a indústria, para o trabalho digno, para a paz com os vizinhos, para a instrução do povo, para a verdadeira compreensão da vontade de Deus sobre a Terra, que dentro das particularidades de cada povo, sempre trouxe a mesma mensagem de amor ao próximo.
Oh Deus, Clemente, e Misericordioso, vendo tais ruinas só se pode pensar nas sábias palavras do Eclesiastes, quando proclama “tudo é vaidade” – névoa-nada nas palavras de um tradutor de nossos dias. Névoa-nada que aprisiona a alma na matéria, que a faz perder oportunidades preciosas de aprendizado e elevação. Névoa-nada que faz um homem esquecer que somos todos irmãos, que as situações transitórias desta existência são na realidade classes de aula, em que a lição ministrada é o “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Caminhando por entre os restos da grandeza passada, pensei, como outros tantos viajantes já o fizeram antes de mim, inclusive o grande místico Ibn Arabi – ainda nos tempos dos Mouros – quão tola é a procura de riqueza, poder e fama. Quão ilusória é a busca e quão temporária é em seu sucesso.
Meu Deus, nesta época em que a economia rege a vida, que o dinheiro é a medida de todas as coisas, que os governos priorizam a moeda em detrimento a todas as outras necessidades, em que o ser humano vale por sua capacidade de produção e pelo seu enquadramento dentro de uma sociedade de consumo globalizada, ver os restos de outra época, diferente desta, mas em que também o ser humano estava em segundo plano, somente nos leva a concluir que nossas glórias terão o mesmo destino – pedras e nomes apagados na história e almas carregadas de compromissos reparadores perante a eternidade.
Fonte: Boletim GeaE, Ano 07, Número 325, dezembro de 1998