Você, espírita, sabe quem foi Kardec, antes e durante seu trabalho com os espíritos? Sabe como ele tomou conhecimento e se aproximou de certos fenômenos que motivaram a codificação? Sabe como era o cenário político, social, científico e religioso de sua época? Estuda regularmente as obras da codificação? Já leu sobre a “A Bíblia na Índia” e “Buda e sua Religião”? Já leu e estudou temas da Revista Espírita? Conhece o catálogo Racional de obras para se formar uma biblioteca espírita?
— Não?!
Tudo bem! Não se lastime. É pouco provável que alguém tenha lido e estudado tudo isso a fundo. E só para que as coisas não fiquem soltas, “A Bíblia na Índia” e “Buda e sua Religião”, dentre inúmeras outras obras fora do contexto espírita e até mesmo várias contra o espiritismo, são citações de Kardec dentro do catálogo racional [1], publicado por ele poucos dias antes do seu desencarne, ocorrido em 31 de março de 1869. O problema maior do espiritismo não é o conhecimento profundo das obras da codificação. O problema maior é o pouco que se reflete sobre o real papel do espiritismo na vida pessoal e coletiva. Teria sido objetivo de Kardec e dos espíritos superiores a fundação de uma nova religião?
Outro aspecto que muitos, dentro e fora do espiritismo, provavelmente, não se dão conta, é que Kardec não escreveu a codificação dentro de um contexto vazio ou isolado de uma realidade que estava muito longe de ser simples e tranquila. Ele enfrentava a censura da Igreja e críticas acirradas de um materialismo fundamentalista, dentre vários outros contratempos do dia a dia. Mas buscava dialogar com ideias do positivismo, do racionalismo, do magnetismo, da ciência experimental e da moral cristã. O espiritismo surgiu como uma tentativa de conciliar fé e razão, espiritualidade e método científico. E, acreditem, isso não era nada fácil, mesmo com o total apoio do plano espiritual.
Sem o entendimento desse esforço e do contexto histórico no qual o espiritismo nasceu, corre-se o risco de uma leitura das obras espíritas com viés dogmático, contaminado por uma fé cega, ou até mesmo por preconceitos infundados. Só para dar um exemplo, tem gente que, desconhecendo completamente o contexto histórico no qual Kardec estava inserido, chega a acusá-lo de racismo, com base apenas em trechos descontextualizados. A concepção de que havia raças humanas não era uma opinião pessoal de Kardec. Era a posição oficial da ciência acadêmica de sua época. Kardec, como dito acima, buscava estabelecer o diálogo entre a ciência e a espiritualidade. Isso não era e continua não sendo uma tarefa simples. Essa questão das raças, em particular, está muito bem explicada nas referências [2] e [3].
Na verdade, Kardec propunha uma filosofia aberta ao espírito crítico e ao progresso. Kardec não negava que o espiritismo tivesse um caráter religioso, mas não o tinha como um dogma de fé irracional e sim como um código de ética lastreado no ensino moral de Jesus. São coisas bem diferentes. Ser espírita não se resume a acreditar nos espíritos e no que está escrito no Evangelho Segundo o Espiritismo. Trata-se de entender a fundo os conceitos e até mesmo refletir criticamente sobre o que se lê e o que se ouve dos encarnados e dos desencarnados.
A obra espírita é vasta. Não basta uma leitura superficial como se faz com romances. É preciso o estudo meticuloso, profundo e continuado, levando em conta o contexto no qual os conceitos se originaram, levando em conta, inclusive, outras obras que, direta ou indiretamente, possam enriquecer esse estudo. O próprio Evangelho Segundo o Espiritismo, rico em alegorias e parábolas típicas da época de Jesus, requer estudo paralelo e aprofundado para melhor compreensão.
O Catálogo Racional, mencionado, não foi concebido como um guia de curiosidades, mas como um convite ao estudo comparado e ao exercício crítico. Ao incluir obras que dialogam com o espiritismo sem serem espíritas e outras que até confrontam o Espiritismo, Kardec deixou claro sua proposta de uma filosofia espírita aberta, que se constrói por meio do diálogo e da razão. Tudo indica que Kardec acreditava que o espírita deveria ser um pesquisador da verdade, e não um repetidor de ideias. O catálogo racional é uma das ferramentas para isso e vinha sendo planejado por Kardec desde o início da codificação, como mostra o seguinte trecho da RE de fevereiro de 1861 [4] (grifos meus).
“Daremos um dia um catálogo racional das obras que, direta ou indiretamente, tratam da ciência espírita, na Antiguidade e nos tempos modernos, na França ou no estrangeiro, entre os autores sacros e os profanos, quando nos tiver sido possível reunir os elementos necessários. Esse trabalho naturalmente é muito longo, e ficaremos muito reconhecidos às pessoas que no-lo quiserem facilitar, abastecendo-nos de documentos e de indicações”. – Allan Kardec.
Isso mostra claramente como Kardec sempre valorizou o estudo comparado da ciência espírita. Com toda certeza, podemos afirmar que um catálogo racional nos dias atuais, conteria todas as obras de Léon Denis (1846–1927), Gabriel Delanne (1857–1926), Chico Xavier (1910–2002), Divaldo Pereira Franco (1927–2025), Herculano Pires (1914–1979), dentre mais uma lista enorme de autores espíritas, não espíritas e das mais variadas áreas da filosofia e da ciência.
O estudante espírita nunca deixará de ser estudioso, pois como ciência e filosofia, a doutrina não se fecha nunca. Graças a Deus, em seu melhor sentido, nunca chegaremos ao fim de um estudo sobre o que sabemos não ter fim. O Universo é infinito, a evolução do espírito é infinita, Deus é inefável e o espiritismo não deve esposar a arrogância dogmática de ser a verdade final.
“O ponto crucial do problema religioso chama-se hipocrisia. E a hipocrisia resulta das atitudes egoístas, da falta de compreensão do verdadeiro sentido da religião, que é caminho e não ponto de chegada da espiritualização”. – Herculano Pires.
Creio que esta frase, cunhada por Herculano Pires em “A Agonia das Religiões” [5], resume bem o que estamos tentando dizer. O espiritismo não é ponto de chegada. O espiritismo mostra um caminho para evolução do espírito. Um caminho racional e desafiador. Outras possibilidades existem e o estudo comparado e crítico dessas alternativas, tal como preconizado por Kardec, só engrandecem o espiritismo.
Nessa mesma obra, Herculano manifesta sua preocupação quanto ao espiritismo vir a se transformar em uma religião dogmática. O autor comenta a diferença entre o dogma religioso e o dogma filosófico, sendo este último um princípio racionalmente estruturado e não um artigo de fé cega que não possa ser questionado, como é o caso do primeiro.
Há muitos estudiosos e adeptos do espiritismo que se dedicam a compreender Kardec em seu contexto original, inclusive com estudos acadêmicos, históricos e filosóficos. Mas há também uma grande parcela de simpatizantes que se aproximam da doutrina de forma mais devocional, em busca de um consolo que não encontraram em outras religiões.
As casas espíritas, sempre de braços abertos ao acolhimento, muitas vezes dão grande ênfase na moral cristã e nos aspectos mediúnicos, mas deixam de lado o caráter filosófico e científico que Kardec tanto valorizava. Isso não representa necessariamente uma falha, mas, provavelmente, é reflexo da forma como o espiritismo se popularizou no Brasil, com forte influência do catolicismo e menos foco na crítica racional.
A questão religiosa é complexa. Vai muito além da caridade e do consolo. Só se percebe isso com estudo e reflexão cuidadosos. O consolador prometido não pode ser compreendido apenas sob o aspecto religioso. É importante perceber que o amor e a caridade, isolados, sem uma reflexão mais detida sobre os fundamentos filosóficos e científicos que devem operar a reforma íntima do espírito, são incompletos. A consolação, por si só, acaba conduzindo ao comodismo, de certo modo egoísta, e à estagnação do progresso. Por isso o espiritismo carrega um caráter dinâmico buscando o diálogo entre religião, filosofia e ciência. Devendo se entender o aspecto religioso não como um dogma de fé, mas sim como um código moral aberto e racional.
Para mostrar a evolução do espiritismo, Kardec publicou no Livro dos Espíritos, no item V da conclusão [6], que as ideias espíritas poderiam ser compreendidas em três períodos distintos. O primeiro, da curiosidade, iniciado com os fenômenos de 1848 em Hydesville, no Estado Americano de Nova York. O segundo marcado pela organização das ideias e pela busca da compreensão das causas e consequências dos fenômenos. Foi a fase da Codificação iniciada com trabalho de Allan Kardec, culminando com a publicação de O Livro dos Espíritos em 1857. Neste período, o Espiritismo estabeleceu-se como uma ciência de observação e uma filosofia. O terceiro período que deveria seguir-se naturalmente seria o da aplicação prática dos ensinamentos.
Mas já na Revista Espírita (RE) de setembro de 1858 [7], sob o título “Propagação do Espiritismo”, Kardec entendeu que quatro períodos descreveriam melhor a evolução do espiritismo, admitindo o terceiro período como da ampla aceitação da doutrina e o quarto como a influência social e moral da humanidade toda. Mas muitas coisas ocorreram nesse terceiro período. Foi um período bastante difícil como nos relata o próprio codificador na RE de dezembro de 1863 [8], sob o título “Período de Luta”, levando Kardec a entender que seis períodos representariam melhor a evolução do espiritismo conforme ele próprio descreveu.
No terceiro período, quando o espiritismo se estabeleceu e ficou claro suas consequências morais com a esperança e consolo para o sofrimento humano, desencadeou-se também a guerra contra ele, conforme mostra o trecho abaixo da referência acima:
“Então uma verdadeira cruzada foi dirigida contra ele, dando início ao período da luta, do qual o auto de fé de Barcelona, a 9 de outubro de 1861, foi, de certo modo, o sinal”. – Allan Kardec.
O auto de fé de Barcelona, foi a queima pública, sob ordem da Igreja Católica, de 300 livros espíritas enviados por Allan Kardec à Espanha. Esse ato de censura marcou um dos episódios mais simbólicos de repressão ao espiritismo no século XIX. Até então o espiritismo e Kardec haviam sido vítimas da incredulidade e do sarcasmo. Mas a partir daí, conforme palavras do próprio codificador:
“… os ataques tomaram um caráter de violência inusitada. Foi dada a palavra de ordem: sermões furibundos, mandamentos, anátemas, excomunhões, perseguições individuais, livros, brochuras, artigos de jornais. Nada foi dispensado, nem mesmo a calúnia”. – Allan Kardec.
É por esse motivo que dissemos acima que ignorar o contexto vivido por Kardec durante a codificação, pode dar uma ideia incompleta do espiritismo e de quem foi Kardec.
Esse período de luta acabou arrefecendo e ensejando o quarto período ou período religioso. Mas não erramos se afirmarmos que a luta, agora bem menos violenta que de início, ainda não se encerrou. Não há mais a perseguição ostensiva da Igreja ou de correntes materialistas, mas os preconceitos e divergências religiosas não deixaram de existir. Mas na visão da época, possível a Kardec e reportada na referência [8] acima, era entendido que (grifos meus):
“a luta determinará uma nova fase do Espiritismo e levará ao quarto período, que será o período religioso. Depois virá o quinto, o período intermediário, consequência natural do precedente e que, mais tarde, receberá sua denominação característica. O sexto e último período será da renovação social, que abrirá a era do século vinte. Nessa época, todos os obstáculos à nova ordem de coisas desejadas por Deus para a transformação da Terra terão desaparecido”. – Allan Kardec.
Aqui precisamos nos deter para uma reflexão e análise cuidadosa, com bastante senso crítico e racionalidade, exatamente como fazia Kardec. A bem da verdade, a frase destacada sintetiza o cerne desta discussão ou, melhor ainda, resume o principal objetivo da doutrina espírita. Dois pontos chamam a atenção: “Depois virá o quinto, … que, mais tarde, receberá sua denominação característica. O sexto e último período será da renovação social, que abrirá a era do século vinte”.
Vamos começar examinando o último ponto, isto é, o período referido como “a renovação social, que abrirá a era do século vinte”. Está claro que esse ponto representa o estágio final para a regeneração da humanidade. Vale notar que o processo de renovação e regeneração, como tudo que ocorre no universo, está subordinado à lei do Progresso, à lei de Amor e Caridade e também à lei de Causa e Efeito. São três leis divinas eternas e imutáveis que norteiam a evolução do espírito. Não é pouca coisa. Mas é um desafio que precisamos encarar, sobretudo se quisermos que o espiritismo faça diferença no mundo de hoje. Caso contrário, corremos o risco de nos tornarmos meros repetidores de regras dogmáticas.
A lei do progresso desdobra-se em progresso intelectual e progresso moral. O progresso intelectual dispensa comentários. Ainda há muito a ser desvendado pela ciência, mas o formidável avanço tecnológico das últimas décadas não deixa dúvidas do enorme progresso intelectual conquistado pela humanidade. Com relação ao progresso moral, infelizmente, a realidade também não deixa dúvida do quanto ainda estamos atrasados. São guerras, preconceitos, degradação ambiental, egoísmo, inveja, maledicência, corrupção e desigualdade social dentre muitos outros graves problemas psicossociais que nos conduzem ao desânimo e, não raro, ao suicídio dos mais frágeis.
Aqui vale a pena examinarmos a questão 780 do O Livro dos Espíritos (OLE) onde Kardec pergunta se o progresso moral acompanha o intelectual? Em resposta os espíritos dizem que: “Decorre deste, mas nem sempre o segue imediatamente.” Kardec prossegue questionando como o progresso intelectual poderia estimular o moral? A resposta dos espíritos é “Fazendo compreensíveis o bem e o mal. O homem, desde então, pode escolher. O desenvolvimento do livre-arbítrio acompanha o da inteligência e aumenta a responsabilidade dos atos.” Kardec insiste mais uma vez perguntado como explicar que povos mais esclarecidos sejam também os mais pervertidos? Em resposta temos: “O progresso completo constitui o objetivo. Os povos, porém, como os indivíduos, só passo a passo o atingem. Enquanto não se lhes haja desenvolvido o senso moral, pode mesmo acontecer que se sirvam da inteligência para a prática do mal. O moral e a inteligência são duas forças que só com o tempo chegam a equilibrar-se.”
Com esses esclarecimentos dos espíritos, já temos algumas pistas para entender por que o século XX não foi como esperado o período da renovação social da humanidade. Mas vamos analisar a questão 783 do LE. Kardec pergunta aos espíritos se a marcha progressiva e o aperfeiçoamento da humanidade é sempre lento? A longa resposta dos espíritos merece análise cuidadosa (grifos meus): “Há o progresso regular e lento, que resulta da força das coisas. Quando, porém, um povo não progride tão depressa quanto deveria, Deus o sujeita, de tempos a tempos, a um abalo físico ou moral que o transforma.” Na mesma resposta encontramos outro trecho muito importante: “Nessas comoções, o homem muitas vezes não percebe senão a desordem e a confusão momentâneas que o ferem nos seus interesses materiais”.
Sob a luz da doutrina, precisamos entender que Deus, causa primária de tudo que existe, infinitamente perfeito, justo e bom, não precisa intervir na cadeia dos acontecimentos. O espírito está usando uma linguagem figurada para enfatizar que na natureza existe uma lei de causa e efeito. O homem colhe o que planta. Não é Deus que vai punir os indivíduos que se comprazem no mal e retardam o seu progresso. É o próprio homem que terá que arcar com as consequências dos seus atos, da sua preguiça, e do seu egoísmo.
As leis divinas são eternas e imutáveis. Deus não precisa reajustá-las. O poder de Deus apenas mantém a lei tal como ela é desde sempre. Essas figuras de linguagem ocorrem com frequência na codificação. O estudante precisa estar atendo aos princípios fundamentais para não fazer uma leitura equivocada. De qualquer modo, as duas questões acima explicam bem o momento que a humanidade terrestre está atravessando. Formidável progresso intelectual cercado por profundos e graves problemas morais.
Só para complementar o entendimento da lei do progresso, vamos ver a questão 785 do LE. Kardec pergunta qual o maior obstáculo ao progresso? A resposta dos espíritos é breve e firme: “O orgulho e o egoísmo”. Os espíritos enfatizam que estão se referindo ao progresso moral. Acrescentam que, embora o progresso intelectual possa num primeiro instante fomentar o egoísmo e luxúria, dentre outros vícios, cedo ou tarde as consequências se apresentam (lei de causa e efeito) e o espírito é obrigado a reexaminar sua conduta. Tudo se encadeia e se liga no caminho evolutivo do espírito. Nosso tempo de observação é limitado. O que vemos é apenas um quadro de um filme sem fim.
Os Espíritos vivem fora do tempo como o compreendemos, e a duração, em anos ou séculos, é uma noção que se apaga diante do infinito. A resposta dos espíritos à questão 240 do LE, se os espíritos compreendem a duração das coisas como nós, deixa isso bem claro: “Não, e daí vem que nem sempre nos compreendeis quando se trata de determinar datas ou épocas.”
Isso praticamente responde porque a renovação da sociedade não ocorreu no século XX como havia sido entendido na época de Kardec. E isso não significa erro nem dos espíritos nem de Kardec. A comunicação entre o mundo espiritual e o mundo material está muito longe de ser perfeita, principalmente em torno de conceitos complexos como o tempo. É necessário ainda muito estudo, critério e bom senso.
Conforme exposto anteriormente, fica claro que estamos estagnados e ainda bastante longe do período de renovação social. E vale apontar que a estagnação não é do espiritismo. Muito pelo contrário, a chaga social do orgulho e do egoísmo espalha-se por toda a sociedade, por todas as classes, por todos os setores e por todas as crenças.
Será que já atingimos o quinto período, designado intermediário, cuja denominação Kardec alertou que viria mais tarde? Ou ainda estamos parados no período religioso? É difícil dizer onde termina um e começa outro. Mas, com certeza, o sexto período, o de renovação social, ainda é um projeto sem data prevista para início. Vamos ver o que nos fala Kardec na RE de outubro e 1866 [9] sob o título “os tempos são chegados” (grifos meus):
Até hoje a Humanidade realizou incontestáveis progressos. Por sua inteligência, os homens chegaram a resultados que jamais haviam atingido em termos de Ciências, Artes e bem-estar material. Resta-lhes ainda um grandioso resultado a atingir: fazer reinar entre si a caridade, a fraternidade e a solidariedade, para assegurar o seu bem-estar moral. – Allan Kardec.
Nesse artigo Kardec trata da transformação moral da Humanidade, anunciando que os tempos marcados por Deus para essa regeneração já chegaram. Kardec argumenta que essa mudança não será catastrófica ou sobrenatural, mas sim gradual, racional e espiritual, guiada pelas leis naturais e pela evolução dos Espíritos. A regeneração se dará pela substituição de Espíritos endurecidos por Espíritos mais evoluídos, predispostos ao bem, à fraternidade e à solidariedade. A referência [9] é estudo obrigatório para quem queira entender o processo de regeneração da humanidade. Todas as considerações abaixo se apoiam nessa referência.
O Espiritismo, conforme delineado por Allan Kardec, tem um papel fundamental na regeneração da humanidade, mas precisa abrir mão do papel de religião, papel este nunca defendido por Kardec. Este é um ponto delicado que precisa ser bem compreendido. O espiritismo é uma filosofia moral racional com profundas implicações na transformação individual e coletiva da humanidade. Propõe uma moral baseada em leis naturais, não em dogmas. Ele parte da observação dos fenômenos espirituais e da lógica para construir uma ética universal. A fé espírita não exige crença cega. Kardec afirma: “Não há fé inabalável senão a que pode encarar a razão face a face.” Isso emancipa o pensamento humano, permitindo que a moral seja compreendida e não imposta. Jesus pregou uma conduta ética de amor, caridade e perdão. Ele não fundou nenhuma religião.
A reencarnação e a continuidade da vida espiritual fundamentam uma ética de responsabilidade. O que fazemos hoje repercute no futuro, não por punição divina, mas por consequência natural. É a lei divina eterna e imutável de causa e efeito.
O Espiritismo vê o ser humano como um Espírito em evolução. A moral espírita é dinâmica, adaptada ao progresso intelectual e afetivo do indivíduo. Kardec não rejeita a religiosidade, mas critica o exclusivismo dogmático que separa em vez de unir. A fraternidade deve ser a pedra angular da sociedade renovada. “Não haverá fraternidade real, sólida e efetiva se não for apoiada em base inabalável, e essa base é a fé, não a fé em tais ou quais dogmas particulares, que mudam com os tempos e pelos quais os povos se atiram pedras, porque, anatematizando-se, eles entretêm o antagonismo, mas a fé nos princípios fundamentais que todo mundo pode aceitar: Deus, a alma, o futuro, o progresso individual indefinido, a perpetuidade das relações entre os seres”. – Allan Kardec.
O espiritismo deve trabalhar pela aproximação entre as várias religiões. Precisa fazer isso despido do rótulo de religião, mas com a bandeira do amor, da caridade e do perdão, aberto ao diálogo fraterno sem se adornar com rótulos que sempre foram causas de afastamento em lugar de aproximação.
“A unidade de crença será o mais poderoso laço, o mais sólido fundamento da fraternidade universal, em todos os tempos quebrada pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as famílias, que fazem ver no próximo, inimigos que é preciso afugentar, combater, exterminar, em vez de irmãos que é preciso amar”. – Allan Kardec (grifos meus).
As religiões, ao se prenderem a dogmas e rituais, muitas vezes fomentam divisões. Kardec observa que a fé nos dogmas particulares, que mudam com os tempos, anatematiza e entretém o antagonismo. A moral religiosa tradicional costuma ser restrita ao grupo de fiéis. Já o Espiritismo propõe uma fraternidade universal, baseada na solidariedade entre todos os Espíritos, encarnados e desencarnados.
O Espiritismo não se impõe. Ele respeita todas as crenças sinceras e combate apenas o fanatismo, o orgulho e o egoísmo que são os verdadeiros obstáculos ao progresso moral. O Espiritismo, não deve propor uma religião, mas sim a crença na fraternidade e solidariedade universal como projeto de transformação social. Ao propagar que todos somos Espíritos em evolução, ele promove a empatia, a tolerância e o senso de justiça. A fraternidade espírita não é utopia. É a pedra angular de uma sociedade regenerada, onde as instituições se fundam na caridade e na solidariedade.
O Espiritismo não diz, fora do Espiritismo não há salvação, mas, irmanado com Jesus proclama, fora da caridade não há salvação, princípio de união, de tolerância, que ligará os homens num sentimento comum de fraternidade, em vez de dividi-los em seitas inimigas. Não é o espiritismo religioso nem nenhuma outra religião que levará a humanidade para um novo estágio. São os ideais puros de amor e caridade na plena acepção ético-moral, que nos levará ao futuro.
Infelizmente, o imediatismo nato do ser humano não é afeito ao estudo e reflexão. Prefere as promessas da salvação, do bom emprego, da cara metade ideal, com a simples adesão e aceitação irrefletida da palavra dos falsos profetas. Mesmo entre nós, espíritas, para muita gente o passe e a água fluidificada parecem ser o bastante para consolar e assegurar um lugar em “Nosso Lar”. O fora da caridade e do amor não há salvação ainda não foi bem compreendido pela maior parte da humanidade encarnada e desencarnada. Sem essa compreensão não haverá regeneração. E a não compreensão é porque não depende apenas de crença, mas sim de uma profunda reflexão filosófica sobre “quem somos, de onde viemos e para onde vamos”. Herculano Pires na referência [5] faz uma bela síntese dessa ideia (grifos meus).
“O homem se emancipa e toma consciência da sua natureza cósmica. Diante dele está o futuro sem limite, a imortalidade dinâmica e demonstrável que se opõe ao conceito limitado da imortalidade estática e hipotética. Sua herança não é o pecado nem a morte, mas a vida em nova dimensão”. – Herculano Pires.
Precisamos compreender a verdadeira dimensão do ser humano, apartado do egoísmo e das vaidades pessoais. O Espiritismo, se quiser, pode substituir o exclusivismo religioso, os ritos e dogmas de fé cega por um princípio ético universal, buscando o diálogo fraterno com todas as crenças, em perfeita harmonia com as palavras do Espírito de Verdade: Amai-vos, eis o primeiro mandamento. Instrui-vos, eis o segundo. Humildemente ouso acrescentar. Eis aqui o caminho da regeneração.
Referências Bibliográficas
[1] Kardec, Allan. Catálogo Racional de obras para se fundar uma biblioteca espírita.
https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/904/catalogo-racional-de-obras-para-se-fundar-uma-biblioteca-espirita – (Acessado em 22/10/2025).
[2] Boschetti, Cesar; 2022. Kardec – Racista ou vítima de preconceito?
https://geae1992.com.br/kardec-racista-ou-vitima-de-preconceito/ (Acessado em 22/10/2025).
[3] A. M. Junior, Jornal de Estudos Espíritas 3, 010207 (2015). Allan Kardec, a ciência e o racismo.
https://drive.google.com/file/d/0BwP5l2F8N4s3YWU2b2YtMjlXX2M/view?usp=sharing
(Acessado em 22/10/2025).
[4] Kardec, Allan. Revista Espírita de fevereiro de 1861. Sugestões de Kardec para reuniões com ausência de mediuns. Parágrafo final da 3ª sugestão.
https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/895/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1861/4941/fevereiro/escassez-de-mediuns (Acessado em 22/10/2025).
[5] Pires, José Herculano. A Agonia das Religiões. Site Espiritualidade e Sociedade.
https://www.espiritualidades.com.br/Artigos/HERCULANO_PIRES_Jose_textos/Herculano_Pires_Obras/Herculano_Pires_tit_Agonia_das_Religioes.pdf (Acessado em 22/10/2025).
[6] Kardec, Allan. Conclusão do Livro dos Espíritos, Terceiro parágrafo do item V.
https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/2/o-livro-dos-espiritos/81/conclusao (Acessado em 22/10/2025).
[7] Kardec, Allan. A propagação do espiritismo, parte final do artigo. Revista Espírita de setembro de 1858. https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/20/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1858/4443/setembro/propagacao-do-espiritismo (Acessado em 22/10/2025).
[8] Kardec, Allan. Período de luta. Revista Espírita de dezembro de 1863.
https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/897/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1863/5521/dezembro/periodo-de-luta (Acessado em 22/10/2025).
[9] Kardec, Allan. Os tempos são chegados. Revista Espírita de outubro e 1866.
https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/900/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1866/5904/outubro (Acessado em 22/10/2025).

