Espiritismo e proselitismo

por Robson Gonçalves.

 

Ao longo de toda a história humana, o proselitismo sempre foi um importante fator de difusão das ideias religiosas. Obviamente, não estamos tratando o termo “proselitismo” em sentido pejorativo; muito ao contrário, entendemos proselitismo simplesmente como qualquer ação com o intuito de conquistar adeptos para uma determinada crença.

Nesse sentido, as grandes pregações, as viagens apostólicas, as manifestações públicas de fé e mesmo os martírios foram poderosos instrumentos de divulgação doutrinária, contribuindo com o amadurecimento moral da humanidade e com a conquista de adeptos pelas doutrinas renovadoras. Na atualidade, diversos credos religiosos, dentre os quais o próprio Espiritismo, ganham espaço nos meios de comunicação de massa: programas de rádio, de televisão, periódicos, páginas na internet (como esta), todos são novos veículos de nossas atividades de divulgação.

Dos manuscritos da antiguidade às mensagens eletrônicas de hoje, porém, o objetivo é um só: facilitar a circulação de preceitos e a divulgação de nossas crenças, fazendo nossa mensagem chegar a mais e mais adeptos em potencial. Em uma única expressão, são todas manifestações de legítimo proselitismo. Afinal, qual de nós, acreditando ter descoberto um corpo doutrinário elevado e, ao menos em princípio, capaz de contribuir com a nossa paz de espírito, não vai querer partilhá-lo com aqueles que ama? Nesse sentido, toda atividade de divulgação das crenças religiosas é um ato de amor, e o próprio Espiritismo não cessa de afirmar que, muito mais do que pelo martírio da cruz, Jesus manifestou seu amor pela humanidade terrena descendo até a esfera material e suportando a opressão da convivência com espíritos muitíssimos menos evoluídos em um verdadeiro ato de renúncia, ato esse que culminou com seu sacrifício no Calvário. Seu intuito não foi outro senão o de dar divulgação às verdades eternas Ele próprio, vivendo-as. Mas é no próprio Evangelho, cujo conteúdo é iluminado pela Revelação Espírita, que devemos buscar um marco capaz de separar o proselitismo legítimo da propaganda vazia e da opressão religiosa. Acredito, inclusive, que esta distinção pode contribuir diretamente para orientar nossa convivência com outros credos religiosos os quais, por sua vez, também estão envolvidos em diversas atividades proselitistas.

Na atualidade, é relativo consenso entre os estudiosos do comportamento humano que vivemos em um ambiente de excesso de informação. Até há cerca de 200 anos atrás, a vida do cidadão comum era terrivelmente mais simples. O progresso material que obtivemos nesse período, além de restrito a uma parcela relativamente pequena da população do planeta, impôs um elevado custo em termos de uma tremenda complexificação da vida cotidiana. Andar pelas ruas das grandes cidades hoje é ser bombardeado por um fluxo contínuo de informações: sinais de trânsito, qualidade do ar, horário, propagandas colocadas por toda parte, jornais afixados nas bancas, cartazes colados nos muros. Necessariamente, esse volume imenso de informação acaba por encontrar limites na própria capacidade humana de assimilá-lo e processá-lo. Não é por outro motivo que o proselitismo moderno tem se deslocado das praças públicas para os meios de comunicação de massa. E a própria existência de um informativo como o do GEAE, capaz de colocar em contato pessoas ao redor do mundo com grande rapidez e eficiência, é prova de que o proselitismo religioso pode aproveitar-se desses meios de comunicação de forma eficaz.

No entanto, é preciso estar atento para as perdas impostas, não pelos meios de comunicação de massa em si, mas por aquele excesso de informação a que nos referimos. Quando se estabelece um meio e comunicação de massa, desde o “outdoor” até a internet, inicia-se uma verdadeira corrida entre aqueles que desejam fazer sua mensagem chegar até o público. Se alguém deixa de utilizar-se desse meio, certamente ficará em desvantagem em relação ao demais. Ao nível das empresas, por exemplo, se uma inicia uma estratégia mais eficaz de propaganda, as demais terão que segui-la ou mesmo superá-la através da adoção dessa estratégia ou de outra ainda mais eficaz. Porém, as atividades de divulgação religiosa, assim como todas as outras atividades ligadas à comunicação, acabam se tornando vítimas de suas próprias tentativas de incrementar sua capacidade de se fazerem ouvir. Quando as estratégias de comunicação de massa se avolumam, o excesso de informação acaba fazendo com que as pessoas comecem a se tornar cada vez menos sensíveis ao conteúdo das mensagens. A partir daí, ainda em uma tentativa de promover algum tipo de diferenciação, aqueles que desejam manter estratégias bem-sucedidas de comunicação de massa acabam por privilegiar a forma com o intuito de chamar a atenção das pessoas, muitas vezes tentando simplesmente chocá-las. Os casos de campanhas publicitárias polêmicas ilustram esse fato. A discussão que se cria em torno da forma de comunicação acaba despertando um interesse quase irracional pelo conteúdo dos produtos, objeto das estratégias de “marketing”. Em um extremo oposto, como poderíamos esquecer de recente campanha publicitária que se utilizou de crianças vestidas de animais para vender produtos alimentícios? Claramente, a pedra angular daquela campanha não foi o conteúdo dos produtos. De toda forma, tal fato demonstra que as pessoas tornaram-se menos sensíveis aos conteúdos das mensagens recebidas através dos meios de comunicação de massa. Apenas para sintetizar tal processo em uma palavra, a crescente perda de importância do conteúdo em favor da forma resulta na “massificação” da informação. Dito isso, como relacionar tais fatos ao proselitismo religioso?

Acredito que o ponto a reter aqui é que as atividades de divulgação do Espiritismo, ainda que possam e mesmo devam utilizar-se dos meios mais avançados de comunicação, jamais devem se deixar apanhar pela crescente desvalorização do conteúdo em favor da forma. Dois exemplos (um singelo e outro de grande significado Doutrinário) poderão ilustrar este ponto.

Certa vez, um colega de serviço perguntou a um nosso companheiro espírita: “Qual a sua religião?” Ao saber que ele era espírita, o tal colega afirmou: “Eu sabia! Você parece mesmo espírita.” Ouvindo esse diálogo, não pude deixar de perguntar ao primeiro afinal o que o fazia ter tal “desconfiança”. O colega de serviço respondeu: “Vocês espíritas têm algumas coisas em comum. São pessoas mais calmas e mais otimistas. Ao mesmo tempo, vocês são muito discretos. Evitam grandes discussões religiosas com pessoas de outras crenças. Coisas assim”. Ficou patente para mim, desde então, que a melhor propaganda de nossa Doutrina era a vivência de nossas crenças, a exemplo do que fez o próprio Jesus. A calma e o otimismo são verdadeiras virtudes espíritas, as quais devem estar presentes na vida de quem acredita que o acaso não existe, e que a verdadeira vida se vive com o espírito.

Naquele momento, também não pude deixar de lembrar da passagem evangélica que narra o encontro de Jesus com seus discípulos no caminho de Emaús, após o Calvário. Jesus se apresenta a seus discípulos com seu espírito materializado. Seu aspecto externo, porém, não é reconhecido pelos discípulos enquanto estão na estrada. Ao longo do caminho, eles discutem textos sagrados e, ao chegarem a Emaús, os discípulos o convidam para cear. Só então, com Jesus materializado sentado à mesa, Ele se faz reconhecer através da forma como parte o pão. Subitamente, seu espírito se desmaterializa. Os discípulos, ainda atônitos, se perguntam como não o reconheceram antes, mas também dizem que, ao longo do caminho, enquanto mantinham aquela conversação elevada, seus corações ardiam com o vigor das palavras do Mestre. Fica a lição. Muito mais do que a mera forma exterior, é o teor de nossos atos e palavras que nos distinguem. Acredito que o principal motivo de esta narrativa tão singela ter sobrevivido nos textos sagrados do cristianismo é a ênfase que se dá através dela à importância da vivência doutrinária, da exemplificação viva da fé, e do aspecto enganador que o formalismo pode ter para nós, espíritos ainda tão distantes da perfeição.

Nesta era de excesso de informações e de conteúdos cada vez mais colocados em segundo plano, os legítimos proselitistas espíritas, dentre os quais eu próprio me incluo, devem estar atentos. Devemos nos furtar a atividades de difusão de nossas crenças que, por qualquer motivo, sacrifiquem o conteúdo doutrinário em favor de uma enganosa maior “eficiência” em termos de divulgação e “conquista de novos adeptos”. Felizes de nós, espíritas, enquanto pudermos ser reconhecidos por nossas virtudes, desde a fraternidade (máxima cristã), até o otimismo, a calma e a discrição (típicas de nossa Doutrina).

Da mesma forma, diante do proselitismo de outros credos, devemos sustentar uma atitude de respeito. Em primeiro lugar porque, assim como nós próprios, os legítimos proselitistas de outros credos estão envolvidos em uma atitude que visa compartilhar com o próximo uma crença que julgam poder contribuir com seu aprimoramento moral. Além disso, é um preceito elementar na atividade de comunicação que toda mensagem transmitida precisa ser assimilável por quem recebe. Não basta que um canal de tv gere o sinal da mais sofisticada programação se as pessoas só possuírem aparelhos de rádio. Assim, ainda que outros credos possam estar menos adiantados que nossa Doutrina em diversos aspectos morais e filosóficos, é possível que estejam prestando sua contribuição com o aprimoramento daqueles que se encontram ainda mais atrasados no caminho de sua própria evolução espiritual. Assim, se outros credos estiverem se utilizando dos meios de comunicação de massa e transmitindo mensagens religiosas de conteúdo moral e filosófico escassos, mas com grande impacto por conta da forma, isto jamais deverá ser pretexto para que nós, espíritas, adotemos as mesmas práticas. É possível que o “sucesso” de tal atividade proselitista, em termos da conquista de novos adeptos, deva-se menos ao uso “eficaz” dos meios de comunicação de massa e muito mais à incapacidade da maioria de nossos irmãos de assimilar preceitos filosoficamente mais densos. Aqui, porém, cabe lembrar outro preceito retirado do Evangelho: quem não é contra nós, é a nosso favor.

Fica, em resumo, minha tese singela de que os espíritas como nós, que buscam fazer bom uso dos novos meios de comunicação de massa, devem evitar a massificação doutrinária. A via mais fácil da “conquista” de um grande número de adeptos, se não estiver respaldada no nível de evolução espiritual de todos, cedo irá se mostrar um caminho enganoso, como toda “porta larga”.


 Fonte: Boletim GeaE, Ano 07, Número 320, 24/11/1998

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