por Marcelo Henrique Pereira
Não há, no Espiritismo, nada “[…] de místico, nada de alegorias susceptíveis de falsas interpretações. Quer ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos de fazer-se que os homens conheçam a verdade. Longe de se opor à difusão da luz, deseja-a para todo o mundo. Não reclama crença cega; quer que o homem saiba por que crê. Apoiando-se na razão, será sempre mais forte do que os que se apóiam no nada”. (Kardec, em O livro dos espíritos, Conclusão, Item VI.)
Existe relação entre Espiritismo e Misticismo? Como entender que uma doutrina racional, embasada na lógica e no bom-senso e fundada na pesquisa séria da fenomenologia mediúnica possa estar sendo associada às práticas místicas, presentes na Humanidade desde épocas imemoriais, reflexos, muitas vezes das crenças, crendices e superstições dos homens de todos os tempos?
Místico, aliás, é uma palavra que, no léxico, está associada à vida espiritual, mas de sentido oculto ou esotérico, sobrenatural, baseada na simples contemplação espiritual, em busca da união (completa e eterna) com a Divindade. O Misticismo, assim, propugna uma completa comunhão entre os seres e o Criador, e, em conseqüência, permite a crença de que as “revelações” espirituais possam ser transmitidas de modo direto, de Deus para os homens, o que, de certo modo, guarda consonância com a teoria espírita da Mediunidade, pela qual as informações espirituais são divulgadas à Humanidade (de todos os tempos) por intermédio dos médiuns, como calcado no capítulo I, de A gênese, formando, assim, ao contrário da revelação divina, a revelação espírita (de espíritos para espíritos). Ademais, o misticismo não se coaduna com a ciência (física), pois depende de uma crença adicional para ser entendido, dependendo, pois, da interpretação das simbologias por parte de algumas pessoas “especiais”, tidas como “iniciados”.
Foi justamente para romper com a idéia do sobrenatural que Kardec aceitou a incumbência espiritual de relatar ao mundo uma nova verdade, com específicos paradigmas de compreensão da realidade espiritual, há exatos 150 anos. Concebeu, com a ajuda prodigiosa da Falange da Verdade, não uma religião, propriamente, mas uma doutrina filosófica (teoria), com embasamento científico (nas pesquisas e experimentações), de conseqüências ético-morais (resultado, objetivo). De modo oposto às religiões e seitas de todas as épocas, a filosofia espírita visa desmistificar a divindade, o mundo espiritual e as relações entre os espíritos (encarnados e desencarnados).
Nos dias hodiernos, a acentuada tendência – mesmo entre os espíritas – para o misticismo tem lugar em razão das escolhas e dos caminhos do próprio movimento espírita. Sem desmerecer ou desqualificar ninguém (pessoas ou instituições), entendemos que a questão de fundo é muito mais peculiar à interpretação (parcial ou mais ampla) da própria Doutrina Espírita. Evidentemente, em termos brasileiros, há que se considerar o contexto cultural e a evolução histórico-social de nosso povo. Primeiro, a influência da religião católica no processo de colonização (e, mais adiante, no próprio Império) é decisiva no sentido de garantir, no curso dos séculos, a proeminência do catolicismo sobre as demais expressões de religiosidade. Em segundo lugar, a existência de índios (e suas crendices), bem como a vinda de escravos negros (e seu sincretismo) para o território pátrio, representou, no cadinho da miscigenação racial, a formação de um “caldo” cultural interessantíssimo, com acentuado caráter místico, merecendo destaque a presença de entidades que se identificam como caboclos ou pretos-velhos, ontem e hoje. No plano espiritual, ainda, é imperioso considerar a presença, na Codificação, de individualidades que haviam sido, em suas últimas romagens encarnatórias, líderes religiosos (sobretudo do catolicismo), e, mais recentemente, em todo o processo de desenvolvimento do espiritismo em solo nacional, alguns expoentes daquela doutrina figuram como mentores espirituais de médiuns e grupos espíritas. De outra sorte, as religiões afro-brasileiras, principalmente a Umbanda e o Candomblé contribuíram para esta “guinada” do espiritismo tupiniquim, abandonando, em parte, os aspectos filosófico e científico e introduzindo uma espécie de “religião” espírita.
E, mais presentemente, também, é possível perceber a introdução de idéias derivadas de filosofias e seitas espiritualistas do oriente, algumas de origem ancestral, cujos conceitos até podem guardar similaridade com certos princípios espíritas, mas que, estudados mais detidamente, revelam diferenças inconciliáveis. De certo modo, a difusão de conhecimentos espirituais não é (nem foi, nem será) privilégio do Espiritismo, de forma que, em diferentes lugares e épocas, as verdades são disseminadas conforme o nível de entendimento das pessoas e comunidades.
A tendência para o misticismo também se acentua nas próprias instituições espíritas, em razão de explicações “fantásticas” que são dadas às questões mais corriqueiras da existência, como se tudo o que nos ocorresse fosse decorrente da ingerência de individualidade(s) desencarnada(s) com poderes para influir em nossa vida. De outra sorte, a estrutura de muitos centros e grupos, centralizados em torno de determinados líderes ou médiuns, envolve a rotina dos atendimentos individualizados (entrevistas, aconselhamentos ou consultas), em que alguém passa a analisar as diferentes contingências da vida do consulente e seus problemas, prescrevendo-lhe, além dos comportamentos “obrigatórios” como a freqüência às sessões de palestras públicas e a submissão aos passes “terapêuticos”, prescrições de caráter opinativo, de como devam se comportar nas situações da vida. Importante salientar, neste contexto, a existência de uma simbiose entre os “necessitados” e os “lideres”, em que ambos se locupletam com a atividade, os primeiros que experimentam “melhoras” ou, quando pouco, se sentem “aliviados”, e os últimos que alimentam suas vaidades e orgulho.
Ainda no concernente à mediunidade, com apoio em Deolindo Amorim (O espiritismo e a investigação científica), o lado místico predomina na prática mediúnica, importando numa amplitude de comportamentos e vivências mediúnicas, com a apropriação de elementos ritualísticos ou formatações particulares, sob a orientação de mentores ou dos próprios dirigentes, impossibilitando a adoção de métodos e experimentações comuns, que melhor direcionem os resultados da atividade medianímica. Muito porque “[…] A legião de sofredores é muito grande, em todas as camadas sociais, e a maior parte do público, por isso mesmo, recorre aos “canais mediúnicos” simplesmente como fonte de consolações ou à procura de esclarecimentos imediatos para suas situações; nunca, porém, como elemento de pesquisa, com visão científica ou filosófica.”
Temos, então, um enorme contingente de beatos espíritas, assim conceituados pelo Prof. Herculano Pires: “O beato espírita não é espírita, pois não conhece a doutrina e não estuda, não se liberta das superstições e dos erros do seu passado religioso. Pela sua crença ingênua está sujeito a servir de instrumento a qualquer espírito mistificador e se apresentar como mestre missionário, reencarnação de Kardec e outras tolices dessa ordem.”
Outra mistificação evidente, também censurada a seu tempo por Herculano, e ainda presente nos dias de hoje, é a vinculação do movimento espírita oficial à teoria roustenista (calcada no livro Os quatro evangelhos, do advogado francês, contemporâneo de Kardec, Jean-Baptiste Roustaing) e seus absurdos conceituais, desprovidos de lógica e frontalmente em desacordo com os conceitos da codificação.
No meio espírita brasileiro, ainda, é possível encontrar teorias que convivem paralelamente ao Espiritismo, ou, ainda, que são estudadas e divulgadas como se fossem espíritas. São exemplos nítidos as idéias de Edgard Armond, Pietro Ubaldi, e Ramatís, muitas das quais totalmente incompatíveis com o corpo doutrinário espiritista, apresentando teses pessoais, as quais não se sujeitaram aos critérios utilizados por Rivail. Há quem acrescente a eles os idolatrados e “oficiais” Bezerra de Menezes, Emmanuel e Joanna de Ângelis, todos com feições evangélico-cristãs, que reduziram a doutrina ao aspecto moral-religioso, sobretudo por sua ascendência na prática religiosa do catolicismo. Não bastasse isso, conforme Herculano, “André Luiz é equiparado a Ramatis e ambos transformados em superadores de Kardec”.
Ante a avalanche de “novidades” que vão aparecendo nos centros espíritas, por pessoas que se encantam com outras filosofias e práticas (a quem Herculano, com propriedade, chamou de “novidadeiros”), nossa postura filosófico-científico espírita deve ser clara e inalterável: a doutrina dos espíritos é uma e contém em si as bases e práticas conhecidas, mencionadas com propriedade em O que é o espiritismo e em O livro dos médiuns. Qualquer outra “inovação” deve ser tratada com cuidado, o que não impede (nem desmerece) que pessoas sensatas e bem-intencionadas, que buscam a tudo conhecer, para reter-lhes a melhor parte, possam – em ambientes não-espíritas – experimentar e praticar, se tiverem certeza dos efeitos positivos que deles advenham. É o caso, por exemplo, da massoterapia, do reiki, dos cristais, da cromoterapia, da aromaterapia, da musicoterapia, entre outras. A justificativa, nossa, de não introdução de tais atividades nas instituições espiritistas decorre do fato de evitar confusões, misturas e tendências ao próprio misticismo, mantendo íntegra a estrutura do pensamento espírita e sua prática correlata.
Se é verdade que a atualidade nos faz presenciar uma “volta ao recomeço”, com a preocupação crescente com temas filosófico-científicos e a reintrodução das pesquisas e experimentos mediúnicos, o segmento majoritário do movimento espírita prefere encarar o Espiritismo como religião, ou “o futuro das religiões”, assumindo, destacadamente, comportamentos místicos em face, principalmente, da idolatria a médiuns ou espíritos e da adoção de rituais e hierarquias, como visto antes.
Como o mundo é, em essência, o que dele fazemos, enquanto inteligências (encarnadas e desencarnadas) e por meio de nossas ações, entendemos que, mesmo com a influência do religiosismo e do misticismo, o Espiritismo cumpre sua marcha, enquadrando-se, presentemente, no final do quarto período (dos seis enunciados por Kardec, na Revista Espírita de dezembro de 1863, sobre a evolução do pensamento espírita), denominado religioso, para, a seguir, em breve, alcançar o quinto, intermediário, que conduzirá ao último, o de renovação social.
Como bem afiançou nosso querido (saudoso e inesquecível) amigo Amílcar Del Chiaro Filho, “O Espiritismo coloca-nos frente a frente com duas realidades, a da matéria e a do espírito. Realidades que se interpenetram, existindo cada uma no seu espaço vibracional. Já não somos mais homens profanos ou místicos, e sim cósmicos, cidadãos do Universo.” O caráter holístico do Espiritismo está, assim, encartado na sintonia mental e permanente do ser, pela mediunidade, com outras inteligências desencarnadas, dando-nos a clara idéia de completude e totalidade, não necessitando de práticas ritualísticas ou explicações fantásticas, já que tudo pertence ao plano do Espírito, e sua realidade transcendente, eterna e imortal.
Por fim, não é repetitivo lembrar, novamente, Herculano, que se refere aos místicos como os que a tudo aplaudem e aceitam, “[…] esquecidos de que não podemos tolerar a mentira e a mistificação.
[…]
Os espíritas conscientes, convictos, precisam opor a barreira da verdade doutrinária a essa avalanche de mentiras que ameaça asfixiar o Espiritismo no Brasil. Chegamos aos limites da tolerância e mergulhamos no erro, entregamo-nos à fascinação das Trevas. E cada um de nós é responsável por essa situação calamitosa. Ou reagiremos contra esse abastardamento do Espiritismo ou seremos cúmplices da ignorância criminosa.”
Tudo, enfim, deve estar no seu lugar. Há espaço para todos, e cada um respira os ares compatíveis com sua desenvoltura espiritual, em afinidade com as vibrações e as circunstâncias que mais lhe apeteçam. Mas, se desejamos, sinceramente, aprender mais acerca da filosofia espírita, que a preservemos de enxertos, alterações e deturpações, mais convenientes aos nossos gostos e pendências, mas, com franqueza, que nada acrescem ao edifício espírita.
O espírita do Século XXI, assim entendemos, resgatará Kardec em sua essência e completude, compreendendo melhor o caráter transformador da filosofia espírita, pura, sem acréscimos ou adulterações, dirigido ao homem e à Sociedade.