Entrevista eletrônica concedida pelo Prof. Aécio P Chagas, prof. titular aposentado do instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. O Prof. Aécio é atuante membro do movimento espírita da cidade de Campinas-SP, especialmente no Centro Espírita “Caso do Caminho”, tendo escrito diversos artigos para revistas espíritas conceituadas.
Além disso sua área de interesse abrange a história, filosofia e ensino da Química. Dedicou-se até 1994 a pesquisas em termodinâmica química, em especial termoquímica de compostos de coordenação, estudo de equilíbrios químicos etc. É membro da Academia Brasileira de Ciências. O Prof. Aécio Chagas escreveu importantes artigos sobre a relação Espiritismo & Ciência enfatizando a correta interpretação dada a essa relação. É portanto com muito prazer que apresentamos a entrevista abaixo.
P1: Em seu artigo “Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho?” [“Reformador”, Julho de 1993, página 208] você e Eduardo Vichi dão uma interpretação bastante contundente da importância desse livro que, muitas vezes, tem sido mal compreendido por alguns setores do movimento espírita em geral. Pela análise que você faz, parece que a má impressão se dissolve pela correta compreensão do Espiritismo em seus mais profundos aspectos, que muitas vezes passa despercebido pela análise superficial “materialista”. A que você atribui essas freqüentes más interpretações de obras dentro do movimento espírita se a doutrina muitas vezes (baseando-se na opinião dos Espíritos) é bastante clara em priorizar nossa atenção a esses aspectos?
Grato pelas suas palavras. Creio que a resposta já está na sua pergunta: interpretações materialistas.
Lembro-me que certa feita li um comentário de Marcus Pereira(*) sobre o Nordeste e suas inúmeras variedades musicais, dizia ele: “Que os economistas me perdoem, mas o Nordeste é a região mais rica do Brasil”. Muitas pessoas sonham com um “Brasil Potência” e ao verem (e nós estamos vendo) que o país não vai nesta direção se decepcionam, achando que o livro “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho” não faz sentido. A leitura da obra de Darcy Ribeiro, “O Povo Brasileiro”, ajuda também a compreender o livro de Humberto de Campos (espírito). Ribeiro é antropólogo e não economista. Não sou contra os economistas, porém a visão econômica é apenas um ângulo. É preciso ver também os outros. Cá entre nós, os outros não seriam talvez mais importantes ?
Por outro lado, muitos confrades interpretam “Coração do mundo, pátria do Evangelho” como um paraíso. Se olharmos o que era a Palestina no tempo de Jesus, veremos que ela estava longe de ser um lugar próspero, tranqüilo, pacífico etc. (o que não fizeram com o Mestre?), e lá era realmente, naquele instante, a pátria do Evangelho. Na realidade nosso país é uma imenso educandário dos sentimentos, um hospital da alma. Para se compreender melhor o Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, é melhor ler primeiro A Caminho da Luz, de Emmanuel.
(*) Marcus Pereira, dono da gravadora de mesmo nome, foi uma pessoa que fez muito pela cultura brasileira. Infelizmente passou para a outra vida pelas suas próprias mãos. Oremos por ele.
P2: Qual a análise que você faz da recente explosão de títulos e novos autores espíritas na atualidade? Que observações você poderia fazer ao espírita sincero que começa a respeito de semelhante nova bibliografia?
Esta “explosão”, como você diz, é excelente, maravilhosa. Atualmente há livros espíritas praticamente para todos os gostos e níveis. Sei que algumas pessoas estão preocupadas com um fração pequena de livros ruins que têm surgido no meio. Seria bom que estas pessoas se preocupassem com os bons livros que também têm surgido.
Àquele que começa na Doutrina, tenho a dizer que estude primeiramente as obras fundamentais e referenciais da literatura espírita (Kardec, Emmanuel, André Luís e outros). Depois passe para os outros (“os novos”) e leia-os agora com espírito crítico, como se aprenderá na leitura de Kardec. Procure comentar com os amigos o que leu, dizendo sua opinião e ouvindo a de outros, o que nos ajuda a separar “o joio do trigo”. Se nós não aprendermos a fazer esta análise, esta separação, acabaremos nos tornando também “joio”.
Também não devemos esquecer que o objetivo da Doutrina Espírita é a melhoria moral do ser humano. Após a leitura de um livro (principalmente se for rotulado de espírita) devemos nos perguntar se o livro contribuiu, ou não, para este objetivo. Esta pergunta vale até para livros técnicos. Como? Ele nos ensina alguma coisa verdadeira, boa, útil, interessante? Então contribuiu para nossa melhoria moral. No livro Sublimação, psicografado por Yvone Pereira, Leon Tolstoi (Espírito) comenta que seu grande sucesso Ana Karenina, escrito quando ainda encarnado, serviu de exemplo para muitas pessoas verem no suicídio algo romântico e heróico. Apesar de esta não ser sua intenção, isto lhe custou muitos sofrimentos, principalmente no mundo espiritual, e ele então voltava para nos alertar contra os perigos do suicídio.
Kardec nos ensinou também os critérios de aceitação das mensagens dadas pelos espíritos. Elas, em poucas palavras, devem satisfazer os seguintes critérios: concordância entre o conteúdo das mensagens obtidas por diversos médiuns (universalidade), não devem contradizer o já estabelecido e a linguagem. Apliquemos isto aos livros que lemos, pois eles são mensagens enviadas pelos espíritos. O fato de alguns estarem encarnados ou desencarnados é um detalhe apenas, como livros de capa dura ou de capa mole.
P3: Como deve dar, na sua opinião, a absorção de novas teses (a respeito da doutrina, vinda de mais diversas fontes, seja dos Espíritos ou dos encarnados) pelo movimento espírita?
Repetindo o que já dissemos na pergunta anterior, Kardec já nos ensinou a fazer isto, ao enunciar os critérios de aceitação das mensagens dadas pelos espíritos: universalidade, concordância com o estabelecido, linguagem. O que surge pela primeira vez e não se nota nada contrário ao estabelecido ou à linguagem, deve-se colocar na gaveta e esperar se haverá confirmações, atendendo assim ao primeiro critério. Kardec deixou muita coisa na “gaveta” da Revista Espírita, que ele publicou afirmando que era necessário aguardar confirmações. Um exemplo são as descrições “fantásticas” do mundo espiritual, que só vieram a ser confirmadas bem depois, com André Luiz e outros. Muitos confrades, ao verem alguma coisa nova costumam se assustar e, em nome da “pureza doutrinária”, já saem combatendo o que foi apresentado. Deveriam seguir a lição de Kardec. Comente e esclareça, pergunte e espere.
P4: Na sua opinião, como devem os grupos espíritas (centros, grupos virtuais, federações) se relacionarem em um ambiente globalizado (necessariamente pluralista em suas orientações ideológicas) quando do trato de novas questões que tenham implicações para a Doutrina Espírita.
Acho que a pergunta tem dois aspectos que, a meu ver, devem ser separados: o primeiro é o ambiente globalizado, e o segundo o que você chama pluralista.
No que se refere ao primeiro aspecto, isto é uma novidade, esta facilidade de comunicação entre os mais remotos pontos do globo é uma nova experiência para a humanidade e não sabemos ainda no que vai dar. Qualquer resposta seria mera especulação.
No segundo aspecto, o que você chama pluralista, é algo que já existe há algum tempo, menos novo que o primeiro, porém somente agora as pessoas estão se dando conta do que está havendo: vivo, e até me dou bem, com pessoas “iguais” a mim, mas que pensam e sentem de forma diferente. Para muitos irmãos isto é uma novidade, um aprendizado novo. Entretanto somente nos comunicamos, com mais intensidade e eficiência, com aqueles que pensam de forma semelhante, pois nossa linguagem está condicionada a isto. Apesar da novidade, ainda por muito tempo nos comunicaremos somente, com facilidade, com aqueles que pensam do mesmo jeito, mesmo que nosso interlocutor more no outro estremo do mundo.
Quanto às instituições espíritas, temos notado que têm aumentado bastante a comunicação entre as pessoas, porém entre os grupos parece que não. Isto não seria decorrente da dificuldade de um grupo se expressar, quando comparada com a do indivíduo? Para um grupo se expressar, deve haver uma homogeneidade, um consenso entre seus membros e, como sabemos, isto não é freqüente. Tenho visto diversas pessoas, dentro do movimento espírita externarem pontos de vista a respeito de como as instituições deveriam se comunicar, porém, como disse são pontos de vista e creio que ainda é cedo para se ter algum “consenso com bom senso”.
Sobre a relação Ciência X Espiritismo
P5: No movimento espírita, há um debate recente sobre a necessidade ou não de o Espiritismo se atualizar como doutrina seja frente as modernas descobertas da chamada “ciência oficial” seja por causa do Espiritismo ter aparecido no Séc. 19. Após todo esse tempo de pesquisa científica acadêmica, como você vê essa questão?
Primeiro sobre a Ciência Espírita. Do que ela trata? Dos seres humanos. Ela têm progredido? Sim, porém lentamente, por uma série de circunstâncias. Uma delas é a falta de pessoas empenhadas em fazê-la progredir.
Sobre as “ciências oficiais”. Elas formam dois grandes grupos: (1º) as ciências ditas “físicas e naturais” (Física, Química, Biologia etc.) e (2º) as “humanas” (Sociologia, Antropologia, Economia etc.). A Ciência Espírita, pelo seu objeto de estudo, se relaciona mais com o segundo grupo. No que ela teria que se atualizar? Sua concepção do ser humano é mais ampla e completa que a das outras ciências. Acho que as outras é que deveriam se atualizar.
Com relação às chamadas “físicas e naturais”, muitas pessoas, dentro do movimento espírita têm se empolgado com certas obras de divulgação científica e acha que o Espiritismo deveria acompanha-las. Mas acompanhar o que? A procissão das ilusões materialistas? Na realidade estes confrades precisam conhecer um pouco de História e Filosofia das Ciências. Muitas obras de “divulgação científica” não foram escritas para divulgar a ciência, mas para divulgar e justificar ideologias que pretendem se apoiar em certos aspectos da ciência. No geral, são livros muito bem escritos, às vezes por nomes famosos, e que acabam criando a ilusão de serem realmente obras de ciência, mas são divulgações de ideologias que não são capazes de se sustentarem à luz da realidade dos fatos e que no fundo pretendem manter as pessoas imersas nas sombras. Ainda mais, em várias dessas obras é uma ideologia se apoiando em uma especulação científica (e vice-versa), e nos faz lembrar a parábola do cego conduzindo outro cego. Já tivemos oportunidade de tratar deste tema em dois artigos que estão publicados no Reformador: A Ciência Confirma o Espiritsmo?, julho/1995, p. 208 e Ainda Sobre as Relações Entre as Ciências e o Espiritismo, abril/1999, p. 124. Recomendo também a leitura do artigo de Ademir L. Xavier Jr, Algumas Considerações Oportunas Sobre a Relação Espiritismo-Ciência, também no Reformador, agosto/1995, p. 244.
O Espiritismo não têm que ser revisto, ele têm é que ser praticado para crescer. É possível que daqui a alguns séculos, com a própria evolução da humanidade, ele necessite ser revisto, ou melhor, ampliado, complementado. Mas no presente, ele precisa ser vivido
P6: Por outro lado, há também correntes que freqüentemente procuram utilizar conceitos e idéias trazidas da física (como exemplo) para exprimir conceitos próprios da Doutrina Espírita. Como você entende esses fatos?
Acho que já respondi em parte na anterior. Agora é necessário distinguir bem esta questão de introduzir os conceitos da Física para exprimir conceitos próprios da Doutrina Espírita com o uso de analogias. São coisas diferentes, mas muitas pessoas acabam se confundindo. Jesus fazia isto e muitos, ainda hoje, lêem as suas parábolas ao pé da letra. As analogias são muito úteis, porém é necessário saber distingui-las.
André Luiz, em Mecanismos da Mediunidade, deixa bem claro que ele faz comparações de comportamento entre circuitos elétricos e mediunidade. Por isto algumas pessoas acabam por achar que o fenômeno mediúnico é um fenômeno elétrico e que portanto poderia ser estudado com aparelhos elétricos. André Luiz está correto ao fazer este tipo de comparação, nós espíritas é que precisamos estudar mais. Este tipo de analogia é comum na ciência e chama-se modelo. Por exemplo, as moléculas de um gás podem ser comparadas a bolas de bilhar, mas nenhum cientista considera que as moléculas sejam realmente bolas de bilhar.
Gostaria, agora, de acrescentar uma pergunta: A Física, que se propõe a estudar a matéria, tem dado conta de explicar toda a matéria?
Qualquer físico profissional responderá com um não (felizmente para ele próprio, caso contrário não teria mais o que fazer). Por exemplo, a idéia de estrutura molecular está aí funcionando, inclusive dentro da Biologia. No entanto, dentro da Mecânica Quântica ela não existe, a não ser como uma aproximação feita de fora para dentro (aproximação de Born-Oppenheimer). Como ficamos então?
Nosso país não tem muita tradição científica e a pouca que tem é carregada de idéias positivistas. Daí muitos pensarem que as respostas científicas “tem que ser exatas”, caso contrário não é científica, tem que haver números, aparelhos etc. O próprio desenvolvimento da Física Quântica mostrou que não existe esta pretensa exatidão e que uma das obras científicas mais importantes do século XIX é a de Darwin e Walace, que não têm números e nem aparelhos.
P7: Como o espírita sincero deve considerar esses procedimentos se tiverem bons propósitos?
Como mencionei acima: ter espírito crítico, trocar informações, utilizar os critérios de aceitação das mensagens e, na medida da nossas possibilidades, seguirmos o exemplo de Kardec: ter bom senso.
P8: Como você entende a aplicação de práticas em princípio não próprias da Doutrina Espírita (como a homeopatia e a cromoterapia) no ambiente do centro espírita?
O que seria uma prática própria da doutrina Espírita? Do Espiritismo prático Kardec dedicou-se quase que somente à mediunidade, e não podia deixar de ser, pois esta é o pilar metodológico do espiritismo. Outros temas ele apenas menciona ou estuda pouco, como os relativos à cura, aos fluidos, à própria reencarnação etc, pois o tempo não lhe foi suficiente. Entretanto é necessário que tudo posso ser estudado à luz da Doutrina Espírita. O passe, por exemplo. Alguns fenômenos ou práticas envolvendo fluidos são muito utilizados, porém pouco conhecidos do ponto de vista científico-espírita. É preciso estuda-los. Como? O laboratório da ciência espírita é o centro espírita.
Entretanto quando menciono “levar para o centro espírita” não é só fazer este estudo e ainda em reuniões públicas, pois o centro espírita não deve deixar de cumprir com as suas múltiplas finalidades, como o estudo e a divulgação da Doutrina, atender aos necessitados (dos dois planos da vida) etc. Há muito o que estudar e aprender, em termos de Ciência Espírita, simplesmente observando o que acontece nas reuniões mediúnicas e sem perturbar e alterar o objetivo do trabalho. Por outro lado, como nas ciências comuns, quando não é possível trazer ao laboratório, leva-se o laboratório ao fenômeno. Por exemplo, para um ecologista uma mata vira um laboratório quando ele a ela se dirige. Ali faz suas observações e experimentos sem perturbar, de forma significativa, a vida dos seres que ali vivem. Um observatório astronômico torna-se um laboratório para estudar um fenômeno que ocorre a vários anos-luz de distância. Então algumas coisas podem ser levadas a um centro espírita, porém outra é o espírita, com suas “ferramentas” é quem deve ali se dirigir. Quem seria o espírita: o próprio investigador do fenômeno em questão que conhece e estuda a Doutrina. E isto vale também para alguém que pode ser chamado de “cientista oficial”. Há muitos confrades que poderiam fazer isto e não fazem. Entretanto sei que o grande problema agora é comunicar as observações feitas a outros colegas e confrades.
P9: Na sua opinião, você acha que grupos espíritas devam realizar pesquisas nesses campos paralelos? Se positivo, em quais condições?
Há muitos espíritas que já fazem estas pesquisas (e não sabem). Acho que já respondi na pergunta anterior e torno a repetir: a grande dificuldade está em divulgar os resultados de seus estudos.
P10: Como você entende o fenômeno da Transcomunicação instrumental? (isto é, quais os benefícios ou malefícios para o entendimento da Doutrina Espírita, se grupos espíritas devem ou não realizar pesquisas no campo e com qual finalidade).
O fenômeno da transcomunicação instrumental é muito interessante e importante e pelo que pude ver através da imprensa espírita, os confrades tendem a se polarizar nos extremos, como muitas vezes acontece. Há uns que vêem como uma coisa que irá substituir o médium, evitando assim toda a interferência que o mesmo pode dar nas comunicações. Outros a vêem como um mero efeito físico, não muito diferente dos copos ou das mesas girantes. Quanto aos primeiros acho que exageram, pois entre nós, com toda objetividade que os atuais meios de comunicação têm, a notícia é “trabalhada”, ou seja, o intermediário interfere no processo. Quando aos segundos, acho que eles não aquilatam o esforço e o aprendizado que se faz “do lado de lá”, para o despertamento da humanidade. Já tivemos oportunidade de externar nossa opinião sobre esta questão no artigo Algumas Considerações Sobre a Utilização de Aparelhos nas Comunicações Mediúnicas, publicado na Revista Internacional de Espiritismo, setembro de 1988, p. 233.
Há entretanto uma pergunta que gostaria de fazer. Se, a medida que a humanidade progride, a mediunidade vai se ampliando, se dilatando em todos os sentidos, com o passar do tempo os aparelhos seriam necessários? É claro que o tempo aqui é medido em séculos e em um século muito pode acontecer (aconteceu e acontece).
De qualquer modo, como o assunto “comunicação” foi abordado diversas vezes, convido-os a lerem e a refletirem sobre as mensagens e os comentários na Revista Espírita, abril de 1864, páginas 117 a 127, em particular as comunicações assinadas por Guttemberg, o inventor da imprensa.
Entrevista publicada em: BOLETIM GEAE | ANO 10 | NÚMERO 427 | JANEIRO DE 2002