Deus meu!
Que gororoba é essa?
Pois é! Esse angu de ideias, em princípio parecidas, são muito mal compreendidas no meio espírita e por isso demandam do estudante sério, profundo e detalhado exame, lembrando que somos todos estudantes na escola do espírito. E por que devemos nos debruçar com calma sobre esses conceitos? Estão errados? Comprometem nosso progresso espiritual? Estão em desacordo com a codificação?
Vamos ver isso com calma. Respostas apressadas podem acarretar mais confusão que esclarecimento. Vamos examinar cada ideia separadamente, analisando sua aplicabilidade e suas implicações morais e filosóficas dentro do contexto da fé raciocinada.
A primeira coisa a ser observada é que Kardec, em toda a sua obra, nunca utilizou os conceitos de “Carma” e de “Ação e reação” em substituição ao princípio de causa e efeito.
Esse fato merece reflexão de nossa parte. Kardec era um homem culto e bastante preocupado com a educação de seu tempo. Com certeza, conhecia o pensamento de Descartes, Kant, Hume, Pascal, Santo Agostinho e Espinoza, só para citar alguns nomes importantes que se ocuparam das temáticas filosóficas da causalidade, do bem e do mal e do livre arbítrio nos séculos anteriores ao século XIX de Kardec. Kardec era um pesquisador sensato. Conduziu sua pesquisa sobre as manifestações espíritas e suas consequências morais com extremo rigor e seriedade. Além disto, não se pode esquecer queKardec contou com o auxílio e consenso de uma plêiade de espíritos de alta envergadura. Tudo isso recomenda muita atenção e respeito de todos os espíritas para com a codificação.
Inicialmente vamos examinar a lei de “ação e reação”. Essa lei foi importada da física Newtoniana para o espiritismo. Trata-se da terceira lei de Newton que estabelece que, a toda “ação” corresponde uma “reação” de mesma intensidade e sentido contrário. Em primeiro lugar, note que essa lei se refere a ação de uma força exercida por um objeto material sobre um segundo objeto material que reage no mesmo instante da ação com uma força de igual intensidade e sentido contrário. Pode-se pensar que a ação de uma força (causa) exercida por um corpo sobre outro corpo, tem como reação (efeito) uma segunda força de igual intensidade que se opõe a ação do primeiro corpo. Observe que se trata de uma lei material. A física clássica Newtoniana trata exclusivamente do mundo material. Vê-se também que “ação” e “reação” são forças materiais simultâneas, isto é, que ocorrem no mesmo instante de tempo devido a interação entre dois corpos ou objetos materiais quaisquer. Só existe reação (efeito) enquanto a ação (causa) estiver presente. Não faz sentido falar em ação e reação separados no tempo. Esse é um ponto fundamental da lei natural de ação e reação que desautoriza completamente sua aplicação da forma pretendida dentro do espiritismo.
Kardec conhecia muito bem as leis de Newton, pois era professor de Astronomia e Matemática, dentre outras matérias. Ele foi corretíssimo em não utilizar a lei de “ação e reação” dentro da codificação. Não havia e nem há razões que amparem esse uso. Nem mesmo no sentido figurado ou metafórico. Apesar disto, tornou-se comum entre os espíritas a referência à lei de “ação e reação” sempre que se queira encontrar explicações ou justificativas anteriores para as aflições presentes do espírito. A busca dessas explicações ou justificativas é perfeitamente válida, mas tem que ser sob uma perspectiva muito diferente sem relação alguma com a lei material de ação e reação. Vale enfatizar, ação e reação são eventos simultâneos envolvendo forças entre dois objetos materiais. Voltaremos a este ponto mais adiante.
Vejamos a lei do “Carma”. A palavra “Carma” vem do sânscrito, uma língua morta. Significa “ação”. Em termos simples, a lei do Carma é equivalente à lei de “causa e efeito” mas com diferenças importantes na sua interpretação. Inclusive, a interpretação do carma não é exatamente a mesma nas diversas doutrinas orientais que abrigam esse conceito. Sem entrarmos em detalhes, o carma é cumulativo, isto é, boas ações não anulam o carma acumulado pelas más ações do espírito, que podem ocorrer inclusive na forma de simples pensamento ou intenção. Além disso, a lei do carma admite a transmigração do espírito para corpos de animais ou até vegetais como castigo.
Aqui também vale notar que, com certeza, Kardec tinha conhecimento das doutrinas reencarnacionistas do oriente, bem como de outras doutrinas como a Rosacruz e a Teosofia que também adotam o conceito de carma. Se Kardec sofreu ou não alguma influência dessas doutrinas espiritualistas, não temos informação. Sabemos apenas que não adotou o conceito de carma, seja por julgá-lo desnecessário, seja por julgá-lo inadequado ao contexto do espiritismo. Isso merece atenção do estudante espírita.
Finalmente, vejamos o princípio de causa e efeito. Trata-se de um princípio natural que estabelece que todo efeito tem uma causa. Observe que o simples enunciado desse princípio já revela uma diferença significativa com relação a lei de “ação e reação”. Esta última, evidentemente, traduz um efeito (reação) devido a uma causa (ação), todavia numa situação muito particular de eventos simultâneos entre dois corpos materiais distintos interagindo entre si. Ao contrário, o princípio de causa e efeito é geral e pode se aplicar não apenas a eventos com entidades diferentes, materiais ou espirituais, mas também a eventos separados no tempo, relativos a uma mesma entidade material ou espiritual. Vê-se a enorme diferença em relação a “lei de ação e reação” que é totalmente inadequada.
Entretanto, a causalidade, isto é, o princípio de causa e efeito não deixa de ter algumas dificuldades interpretativas. Vale insistir. Kardec foi muito criterioso com todas essas ideias. O estudante atento não irá encontrar em parte alguma da codificação a ideia de causalidade abordada em termos simplistas na forma do popular chavão, “lei de causa e efeito”, invocado sem qualquer reflexão para explicar todas as aflições humanas. Kardec, evidentemente, não deixa de se ocupar com as causas anteriores das aflições. É evidente que as aflições do espírito têm causas anteriores. Todo efeito tem uma causa. E toda ação tem consequências. Tudo isso tem lógica. Mas de que forma o “efeito” e a “causa” estão interligados no tempo e no espaço? Se todo efeito tem uma causa, essa causa seria também o efeito de uma causa anterior e assim sucessivamente. Na realidade, teríamos uma cadeia infinita de causas e efeitos intermediários interligados. Vê-se também que causa e efeito se tornam uma coisa só, pois uma causa nada mais é que o efeito de uma causa anterior. Isso pode acarretar alguns problemas relativos à liberdade e ao livre-arbítrio. Kardec devia conhecer bem essa problemática. São questões muito antigas e ao mesmo tempo sempre atuais da filosofia. Merecem uma abordagem a parte. Por hora ficaremos com o bom senso de Kardec que, sem abrir mão de tratar das causas anteriores das aflições e das possíveis consequências das ações dos espíritos, evitou a rotulagem apressada de um chavão “lei de causa e efeito” explicativo de todos os males.
Vamos explorar um pouco esse universo das causas do sofrimento e das consequências das ações do espírito. Façamos um exercício intelectual. Usemos nossa fé raciocinada. Vamos imaginar a trajetória do espírito a partir do momento que passa a revestir-se de um primeiro corpo com características humanas começando a se destacar. Vale lembrar que o princípio espiritual foi criado muito antes disso, tendo jornadeado pelos vários reinos da natureza. Ao iniciar sua jornada evolutiva no reino hominal, esse espírito é ainda um ser simples e ignorante, mas com o diferencial de já trazer consigo a semente da razão e da liberdade. Localizar no tempo e na história do planeta esse grande salto do princípio espiritual extrapola completamente nossos conhecimentos. Até mesmo os espíritos superiores que assessoraram Kardec foram humildes em reconhecer a total ignorância desse ponto. Sem pretendermos entrar nesse mérito, apenas a título de contextualização aproximada, sabemos que o homem moderno, homo sapiens sapiens, surgiu há cerca de 150.000 anos. Os primeiros hominídeos, isto é, indivíduos com características diferenciadas importantes em relação aos símios surgiram bem antes, há cerca de 7 milhões de anos na África. Seria pura especulação dizer se as primeiras encarnações do espírito humano começaram com o homo sapiens sapiens ou com os primeiros hominídeos há cerca de 7 milhões de anos. Contudo, apesar do gigantesco lapso de tempo no plano material, isso não nos impede de compreender que o espírito do homem primitivo já trazia dentro de si um germe divino capaz de conduzi-lo da total ignorância à radiosa perfeição dos espíritos puros da esfera Crística. É um caminho longo, muito longo. Nossa insignificância não nos permite vislumbrar a extensão e beleza dessa caminhada. No artigo (Uma história do fogo (geae.net.br) ) tento apresentar um possível recorte dessa caminhada. Mas continuemos exercitando nossa fé raciocinada. Fé porque acreditamos na infinita perfeição do Criador e de toda a sua criação. Raciocinada porque temos a inteligência, a razão e o livre arbítrio dados pelo Criador para guiar nossos passos.
Essa fé raciocinada não vem pronta com manual de usuário desde nossas primeiras encarnações no reino hominal. É algo a ser conquistado e desenvolvido ao longo do caminho evolutivo. O sucesso dessa aprendizagem que, em termos simples, se traduz na conquista da felicidade e na expansão moral e intelectual do espírito, é lento, muito lento e permeado de desafios. Mas está assegurado pelo germe divino plantado em nosso espírito.
Vale notar que o alpinista não quer ser transportado para o cume da montanha. Ele quer galgá-la, superar gradualmente seus desafios com inteligência, audácia e perseverança. Da completa simplicidade e ignorância ao atual estágio que nos encontramos hoje foi um longo caminho. Um caminho tortuoso repleto de desafios que gradualmente foram aprimorando nossa capacidade de julgamento e entendimento. Capacidade esta ainda muito longe de nos permitir escolhas completamente seguras e lúcidas das melhores ações que nos conduzam a um futuro melhor. Seria temerário afirmarmos, hoje, a posse de virtudes que mal começamos a compreender. Mas já estamos em condição de perceber que a Grandeza do Criador não está em punir ações equivocadas simplesmente porque não há ações equivocadas, apenas ações que precisam de permanente aprimoramento. Além disto, que lógica haveria no Criador infinitamente perfeito punir Sua criatura em processo de aprendizagem, sujeita a cometer todos os erros previstos pelo Criador no Seu Perfeito Plano pedagógico. Como bem colocado por Paulo de Tarso, “Nada é proibido, mas nem tudo convém”. A conveniência ou não das coisas é o motor da evolução do espírito. Não há carma nem lei de causa e efeito nem muito menos lei de ação e reação. Essas crenças são resquícios de ideias religiosas ultrapassadas, ainda presas ao antigo conceito de um Deus juiz a prescrever as penas do inferno para quem erra e as recompensas do paraíso para quem acerta. Se quisermos acreditar em um Deus infinitamente justo, bom e perfeito, temos que afastar de uma vez por todas a ideia de punição e resgate de erros passados. Isso não tem lógica. O sofrimento do espírito não é causado por erros, mas por ignorância e imperfeições. O sofrimento é um instrumento pedagógico. É como uma bússola que o espírito precisa aprender a usar. O alpinista, em sua escalada para atingir o pico da montanha, escorrega e cai muitas vezes. Mas não desiste e segue em frente. A cada escorregão e queda aprende o que deve e o que não deve fazer para seguir em frente em direção ao cume da montanha. Assim caminha o espírito. Somos todos alpinistas escalando a mais bela e mais alta de todas as montanhas. A montanha da vida. Precisamos mudar nossa perspectiva de bem e de mal. Por pior que seja, a nosso ver, um indivíduo brutalizado, inclinado a prejudicar o próximo, e a sociedade como um todo, cometendo friamente as maiores atrocidades, temos que admitir que se trata de uma criação Divina em processo de aprendizagem. Claro que não é fácil digerir isso. Quem foi que disse que evoluir seria fácil? Mas precisamos nos lembrar de Jesus que não colocava barreiras entre si e os bandidos, as prostitutas, os soldados e todos os demais elementos da sociedade. Em seu último suspiro na cruz deu-nos o seu maior testemunho de que somos todos ainda muito ignorantes em busca de conhecimento e felicidade– “Perdoai-os, Pai. Eles não sabem o que fazem”.
Nesta altura, alguns poderão protestar de forma muito justa que, vários autores e palestrantes conceituados usam a terminologia, “ação e reação”, “carma” e “causa e efeito” como sinônimos. Como explicar isso? Falta de conhecimentos? Falta de estudo? Má fé?
É complicado julgar as pessoas pelo uso de determinadas palavras em determinados contextos. É uma situação muito subjetiva que tem a ver não apenas com conhecimento, mas também com a intenção e esforço para se fazer entender. Como visto acima, falar sobre a justiça Divina por meio de uma ou duas palavras concisas não é tão simples assim. Nossa cultura está há muitos séculos sob o império de dogmas e conceitos distorcidos a respeito de Deus e do destino dos espíritos. A mudança de perspectiva é lenta. Talvez por isso muitos prefiram usar um termo já popularizado, mesmo que inexato. Não se deve desqualificar o trabalho das pessoas por conta de erros que estão mais para um vício de linguagem e de costumes arraigados que para falta de conhecimento e muito menos má-fé. Não há porque desmerecer e não respeitar o trabalho de vários autores e palestrantes porque mostram esses vícios de linguagem. Há que se compreender que as qualidades de muitas obras podem ser muito maiores que seus eventuais defeitos.
Mas está na hora do movimento espírita atentar mais seriamente para as obras da codificação. Está na hora do movimento espírita se conscientizar que Kardec ainda precisa ser muito melhor estudado e conhecido. Não tem mais cabimento continuarmos enxertando conceitos e novidades estranhas à doutrina. Uma doutrina que, sejamos honestos, ainda temos muito que aprender. A leitura e estudo do evangelho segundo espiritismo jamais será proveitosa e completa enquanto o estudante espírita se limitar a esse livro apenas. Mesmo as obras ditas complementares ou subsidiárias, como as de André Luiz e Emmanuel dentre várias outras, só poderão ser apreciadas, de fato, depois de havermos estudado muito bem Kardec.
Basta de ideias e expressões distorcidas agregadas ao espiritismo como se fossem inovações necessárias. Basta de “carma”, “ação e reação”, “corpo astral”, “kundaline”, “chakras” etc… etc… Está na hora do movimento espírita perceber que, com o devido respeito, as terminologias importadas ficam muito melhor nas respectivas doutrinas originais. São desnecessárias e até inadequadas ao espiritismo.
Se quisermos que o espiritismo seja respeitado como filosofia moral aliada à ciência e abrigo de uma vivência religiosa verdadeiramente cristã, bem como mediador de um diálogo inter-religioso despido de preconceitos, façamos dele o que propôs Kardec. Qualquer coisa diferente com enxertos indevidos só nos jogará no descrédito. Conduzirá o espiritismo a um movimento sem identidade. Em lugar de uma fé raciocinada, estaremos oferecendo apenas misticismo e modismos sem base.
O espiritismo não precisa de revisão, inovação ou acréscimo de conteúdos espúrios. O espiritismo precisa apenas ser melhor conhecido e estudado. Não basta crer em Deus e na reencarnação. É preciso entender o real significado e conexão disso tudo. Espiritismo sem estudo sério não é espiritismo, não edifica. É melhor procurar outro caminho.