Causalidade, um causo muito sério

Em artigo anterior (Causas cármicas do efeito da ação e reação!) buscamos mostrar que a lei de “ação e reação” e a lei do “carma”, largamente utilizados pelos espiritas como forma de explicar ou justificar as vicissitudes da vida presente, são conceitos totalmente inadequados. Kardec jamais se utilizou deles.

Mas não vamos repetir aqui o que já foi bem detalhado no referido artigo. Vamos retomar a questão das causas anteriores das aflições, ordinariamente, e também sem maiores reflexões, designada pela maioria dos espíritas como “lei de causa e efeito”. Aqui também devemos nos debruçar com muito carinho e cuidado sobre o monumental trabalho do codificador.

Ao longo de todas as obras da codificação, Kardec preocupa-se com a questão das causas anteriores das aflições humanas e ocupa-se com leis. As leis da natureza, as leis divinas, as leis materiais. Dedica toda a terceira parte do Livro dos Espíritos, como as leis morais. Aborda a lei de adoração, lei do trabalho, lei de reprodução, lei de conservação, lei de destruição, lei de sociedade, lei do progresso, lei de igualdade, lei de liberdade, lei de justiça, de amor e de caridade, mas não fala em “lei de causa e efeito”. Será que Kardec e os Espíritos Superiores se esqueceram dessa lei? Será que existe de fato uma lei de causa e efeito no sentido que determinada causa produza obrigatoriamente determinado efeito? O clássico dito popular – quem com ferro fere com ferro será ferido.

Tudo bem! Temos que tomar as coisas no sentido figurado. Mas o problema é que o sentido figurado acaba virando hábito e se convertendo em regra com força de lei. Isso acaba induzindo o indivíduo a uma postura religiosa de fé não raciocinada. Por isso, dentre outros motivos, é que o espiritismo deve recusar o rótulo de religião. Não se trata de preconceito ou pouco caso para com as religiões. Trata-se apenas de zelo para com a fé raciocinada e com a liberdade de pensamento que permite ao espírita vivenciar também outras formas de espiritualidade, se isto lhe convir, mas de modo consciente, preservando a autonomia e a liberdade de pensamento.

Mas voltemos ao tema da causalidade. Antes de tudo, convém deixar claro que não faz parte de nossas pretensões esgotar o assunto. Seria pura estupidez querer dar conta de um tema que preocupa a humanidade desde tempos imemoriais. Que todo efeito tem uma causa não se pode duvidar. Mas daí, querer estabelecer uma lei de “causa e efeito” que objetive vincular de forma rígida causas e efeitos vai uma grande distância conceitual. Existem efeitos com causas múltiplas, bem como existem efeitos (que também são causas de efeitos posteriores) que ainda escapam à nossa percepção no atual estágio evolutivo. Existem ainda efeitos de caráter probabilístico como nos revela a mecânica quântica. Kardec foi muito sensato em não estabelecer uma “lei de causa e efeito”. Ele não conhecia mecânica quântica, mas refutava o determinismo, pois acreditava no livre arbítrio.

Além disto, o espiritismo nos ensina que sempre podemos modificar o rumo das coisas, isto é, os efeitos de nossas ações passadas não estão rigidamente pré-determinados. Nosso livre arbítrio e as leis divinas nos brindam com incontáveis possibilidades diferentes de correção de nossos erros passados. Não existe efeito sem causa, mas não existe efeito pré-determinado. A diferença é sutil, mas precisa ser compreendida sob pena de nos resignarmos de modo cego às vicissitudes da vida. A resignação apregoada por Jesus se refere às coisas que extrapolam nossa vontade e livre arbítrio. É importante notar a diferença.

É aqui que entra a lei do trabalho. Na questão 674 do Livro dos Espíritos, Kardec pergunta aos Espíritos se a necessidade do trabalho é lei da Natureza, ao que os espíritos respondem: “O trabalho é lei da Natureza, por isso mesmo que constitui uma necessidade, e a civilização obriga o homem a trabalhar mais, porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.”

Kardec prossegue com a questão 675, perguntando se por trabalho só se devem entender as ocupações materiais? Resposta dos espíritos: “Não; o Espírito trabalha, assim como o corpo. Toda ocupação útil é trabalho.”

Kardec procura aprofundar o tema com a questão 676, perguntando por que o trabalho se impõe ao homem? Resposta dos Espíritos: “Por ser uma consequência da sua natureza corpórea. É expiação e, ao mesmo tempo, meio de aperfeiçoamento da sua inteligência. Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à inteligência. Por isso é que seu alimento, sua segurança e seu bem-estar dependem do seu trabalho e da sua atividade. Ao extremamente fraco de corpo outorgou Deus a inteligência, em compensação. Mas é sempre um trabalho.”

Vemos assim a importância do estudo. Kardec, orientado pelos Espíritos Superiores, nos apresentou uma Filosofia Moral aberta, como é próprio de uma filosofia. Isto permite ao espírita vivenciar uma religiosidade verdadeiramente cristã, aberta ao diálogo inter-religioso e aos avanços da ciência, despido de preconceitos e pautada por uma fé raciocinada. Procure perceber que, entre a filosofia moral espírita e as religiões tradicionais, existe uma enorme diferença. Diferença que, sob hipótese alguma, nos autoriza menosprezá-la. Mas para respeitá-las não precisamos, nem devemos adotar seus dogmas e costumes.

Nada é por acaso! Nenhuma folha cai de uma árvore sem o conhecimento de Deus! Resignação! O bem sofrer! Está tudo de acordo com os desígnios Divinos! A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória! Lei da Causa e efeito! Todas essas ideias carregam uma parcela de verdade, entretanto uma parcela que precisa ser vista sob o prisma da fé raciocinada.

É curioso como o ser humano, consciente ou inconscientemente, revela certa necessidade de fetiches, fórmulas mágicas e coisas afins. No caso espírita, as leis de ação e reação, lei do carma e lei de causa e efeito parecem cumprir esse papel. É como se nossos problemas fossem uma imposição da natureza e, a simples invocação dessas leis, permitiria nos isentarmos de parte de nossa responsabilidade por eles. Precisamos mudar esse enfoque. Deus não nos fez pecadores para serem punidos. Fomos criados simples e ignorantes, mas perfeitamente aptos ao constante aprimoramento. Nossos erros não são pecados. São parte do processo de aprendizagem. Nossos problemas não são uma punição. São lições e oportunidades para novos aprendizados.

A proposta espírita de resignação, amor e caridade, sem dúvida, bela e verdadeira, não deixa de encerrar uma armadilha. Armadilha não no sentido pejorativo, mas de precisarmos ter muito cuidado para não perder a oportunidade do real exercício do livre arbítrio, da fé raciocinada, do amor e da caridade verdadeiros. Essa é a essência do “Orai e Vigiai”.

Ser tolerante, resignado e aceitar amorosamente as adversidades da vida não deve ser confundido com passividade comodista frente aos problemas, cuja solução nos cabe. Vale aqui a oração: “Deus, dai-me paciência e resignação para aceitar as coisas que não posso mudar, mas dai-me forças para mudar as coisas que devo mudar e, acima de tudo Pai, dai-me sabedoria para perceber a diferença”

Que assim seja!

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