por Afonso Fioravante.
As obras básicas da Codificação Espírita devem ser lidas como se lê livros sagrados, obtidos prontos e acabados ou elas admitem análise crítica dentro do princípio da Fé raciocinada? Inclui-se neste contexto as obras psicografadas, classificadas como subsidiárias.
Na primeira parte do Livro “O céu e o inferno”1, Allan Kardec comenta que “se a religião, apropriada em começo aos conhecimentos limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movimento progressivo do espírito humano, não haveria incrédulos, por que está na própria natureza do homem a necessidade de crer, e ele crerá desde que se lhe dê o pábulo espiritual de harmonia com suas necessidades intelectuais”.
Um ano antes de retornar ao mundo espiritual, o codificador, amadurecido em suas ideias, publica em
1868 “A Gênese”2. Neste livro, escreve um monumental texto intitulado “Caráter da revelação espírita” que, de tão importante, deveria servir como introdução a todos aqueles que desejassem conhecer com profundidade a Doutrina espírita.
Explica Kardec que, por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter, participando ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. A revelação foi divina porque não partiu da iniciativa humana à vontade de obtê-la. Mas como não são passivos os espíritos que a trouxeram e nem os que a receberam, não nos foi dispensado o trabalho de observação e de pesquisa.
Os Espíritos não interditaram o exame das questões, mas, ao contrário, o recomendaram.
Conforme Kardec, a doutrina espírita não foi ditada por completo, nem imposta à crença cega. É deduzida pelo trabalho e pela observação dos fatos. Em resumo: a revelação espírita é de origem divina, mas sua elaboração é fruto do trabalho do homem.
O espiritismo e a ciência se completam reciprocamente. Segundo o mestre de Lion, nenhuma ciência existe que haja saído prontinha do cérebro de um homem. Todas, sem exceção de nenhuma, são frutos de observações sucessivas, apoiadas em observações precedentes, como em um ponto conhecido para chegar ao desconhecido.
Finalizado sua análise na Gênese, Allan Kardec ressalta um último caráter da revelação espírita: ser essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. As descobertas da ciência, longe de rebaixarem o espiritismo, glorificam a Deus e mais: “caminhando de par com o progresso, o espiritismo jamais será ultrapassado, por que, se novas descobertas lhe demonstrarem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificará neste ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”.
Este posicionamento corajoso e honesto do Codificador coloca a ciência espírita com uma característica fundamental da própria ciência: o da Autocorreção. Devido a esta característica, a ciência tradicional tornou-se por excelência, a doutrina pela qual a humanidade acumula conhecimento. Daí a sabedoria de Kardec, quando lamentou que as religiões não acompanharam o movimento progressivo do espírito humano.
A ciência evolui se comportando como a seleção natural, se livrando de erros, teorias obsoletas com muita facilidade, para poder avançar. Por que a ciência espírita deveria temer, se privar ou se envergonhar disto? O físico Stephen Hawking, considerado o mais brilhante físico teórico desde Albert Einstein, ocupando a cadeira de Issac Newton em Cambridge, revelou ao mundo que cometeu um erro em seus cálculos relativo aos buracos negros. Atitude louvável, que nem por isso invalidou sua contribuição para a ciência.
A ciência espírita não está cristalizada nas obras da codificação nem nas chamadas obras subsidiárias. Ela necessita de desenvolvimento constante e permanente. O próprio codificador demonstrou isto ao publicar a 2ª edição do Livro dos Espíritos, três anos após a primeira. Como a 1ª edição é completamente desconhecida pela imensa maioria dos espíritas, muitos acreditam que a 2ª edição contém apenas mais algumas perguntas. Na verdade, Kardec se debateu com questões gravíssimas, estudando-as e analisando-as de 1857 até 1860, quando reformulou a 1ª edição do LE: eliminou questões, revisou algumas e acrescentou muitas outras novas.
Isto demonstra que não há “pecado” nem heresia em questionar, investigar, rever, reformular, em progredir. Revisando a 1ª edição Allan Kardec abriu as portas para o progresso da ciência espírita.
Esta ciência poderia avançar muito mais, se não estivesse travada por alguns companheiros de doutrina ainda vinculados aos paradigmas ultrapassados das igrejas, que ainda não perceberam que continuam impondo medo às pessoas incautas, não com a ameaça do inferno, mas com a do umbral; não com o demônio, mas com os obsessores; não com a imposição de anjos, mas com a de “mentores espirituais”. Se as lideranças ainda não compreendem o verdadeiro caráter da revelação espírita, que esperar dos frequentadores que vão ao centro apenas para “tomar passe”?
Grande parte da terminologia adotada por Kardec, veio de Paracelso, no século XVI e de Anton Mesmer, do século XVIII. Esta terminologia não é mais utilizada pela ciência. Não há erro em Kardec, que usou o conhecimento de sua época. O erro é continuar cristalizando conceitos superados. Precisamos refletir profundamente sobre os termos “Princípio Vital”, “Fluido Vital”, “Fluido magnético”, “Passe magnético”, e outros.
O médium Divaldo Franco tem utilizado o termo “Passe bioenergético”, como uma atualização interessante.
Conforme a metodologia Kardequiana, não devemos simplesmente seguir por seguir o que um dito guia mandou ou o que o Espírito escreveu ou o médium psicografou. É fundamental a análise, com base na razão e na coerência doutrinária. Aliás, guia ou mentor de mais elevação, jamais dá ordens para serem seguidas.
Será que temos o direito de exigir que André Luiz tenha se tornado um Espírito superior, logo após passar oito anos no umbral? Foram tantas informações colhidas no mundo espiritual, que não é de se admirar que alguma delas não corresponda ao que ele quis trazer para nós. Algum absurdo nisto? Pior para ele é o considerarmos infalível.
Vejamos um outro exemplo: podemos considerar como correta a afirmativa de Humberto de Campos3 (Espírito) colocando João Batista Roustaing como responsável pela organização do trabalho da fé, na implantação da doutrina espírita, no mesmo nível de Leon Denis? A razão nos indica que isto não seria lógico. Organizar implica em refazer aquilo que está desorganizado. A obra “O Evangelho Segundo o Espiritismo6” já não teria cumprido o papel de levantar o véu das alegorias do Evangelho, contribuindo com a Fé raciocinada? A Fé espírita nunca esteve desorganizada.
Temos o direito de questionar se no original desta obra constava esta referência. Infelizmente os originais foram queimados pela FEB, assim como outros, com objetivo de evitar polêmicas.
O certo é que, em 1937, no Livro “Crônicas de além túmulo5”, Humberto de Campos dita um texto com os nomes de grandes vultos sem citar Roustaing. Em 1938, o mesmo autor espiritual “insere” o nome polêmico de Roustaing em texto similar. Na verdade, Roustaing nunca colaborou com Kardec na codificação.
No livro “A caminho da Luz”, psicografia de F. C. Xavier, o espírito Emmanuel informa que existem planetas orbitando o sistema de Capela, na constelação do Cocheiro, que é um sistema estelar quádruplo com quatro componentes. A existência destes planetas ainda não foi confirmada pela ciência. Se realmente a ciência confirmar que não existem planetas neste sistema, ficaremos com a ciência, segundo Kardec. Caberá ao Espírito Emmanuel esclarecer o motivo de sua informação.
Seremos dignos de anátema levantando estas questões? Fé inabalável é somente aquela que resiste ao crivo da razão.
Infelizmente a ciência oficial ainda é puramente materialista. A ciência espírita precisa avançar. Os cientistas bem-sucedidos só formulam problemas que apresentem boa probabilidade de serem resolvidos. A ciência espírita é a porta de entrada para uma nova concepção do universo. Mas, pelo andar da carruagem, é provável que os cientistas descubram esta porta sozinhos, quando seu conhecimento esbarrar na fronteira matéria-espírito. A atual postura do movimento espírita não funcionará como facilitador deste processo, pelo contrário, talvez até como mais um entrave do pensamento religioso.
A sabedoria está no meio, não nos extremos. Duvidar de tudo é idiotice; acreditar cegamente em tudo sem análise é imprudente. Basta observarmos a produção dita mediúnica, atualmente: quanta bobagem, quanto mercantilismo.
Entretanto a base Kardequiana permanece de pé, firme, resistindo ao progresso científico espetacular deste último século. Segundo Herculano Pires4, se os espíritas soubessem o que é o centro espírita, quais são realmente a sua função e a sua significação, o espiritismo seria hoje o mais importante movimento cultural e espiritual da terra.
Infelizmente, prossegue Herculano, este vasto conhecimento do mundo espiritual é ofuscado pela insistência em emparelhar a doutrina espírita com as religiões decadentes e ultrapassadas.
Observamos muitos expositores espíritas “pregando” o evangelho, de forma despreparada, competindo com pastores, sem vincular a mensagem com os princípios espíritas. Pelo menos os pastores sérios estudaram teologia e falam do que conhecem.
Se Jesus é a porta e Kardec a chave, é necessário estudar e compreender os princípios básicos da Doutrina Espírita primeiro, para depois compreender as mensagens do Evangelho. O que observamos são palestras de temas de um livro só: O Evangelho segundo o Espiritismo. Onde estão as palestras com conteúdo das demais obras da Codificação? Onde estão as palestras sobre as obras de Leon Denis, Gabriel Delanne, Ernesto Bozzano e outros continuadores confiáveis da Doutrina Espírita? Palestras de um livro só não divulgam a Doutrina Espírita.
Estamos descartando o aspecto moral da doutrina espírita? Claro que não, pois ele bem compreendido é fundamental para nossa progressão espiritual. Mas não podemos transformar este aspecto em mais uma religião qualquer, disseminando a mentalidade de rebanho em nosso movimento, fazendo as pessoas continuarem a temer a Deus e se sentirem pecadoras.
No extraordinário texto de Kardec sobre o caráter da revelação espírita, o mesmo afirma que a parte mais importante da revelação do Cristo, considerando-a como pedra angular de toda a sua doutrina é o ponto de vista inteiramente novo sob que considera ele a divindade. Jesus nos mostra um Deus de amor e não um Deus antropomórfico, terrível, ciumento e vingativo como é o Deus de Moisés o qual não é possível amar, mas temer.
Convidamos o leitor a estudar com atenção o texto de Kardec sobre o caráter da revelação espírita, em “A Gênese”. Só afirmar que a doutrina espírita é não dogmática não basta: é preciso vivenciar isto.
Concordamos com o codificador quando afirma que os Espíritos não vieram e não virão para resolver nossos problemas da ciência; não virão para dar saber aos ignorantes e preguiçosos e nem trazer para nós meios para enriquecermos sem trabalho.
Espíritas amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, o segundo.
BIBLIOGRAFIA :
1 – KARDEC, Allan – O céu e o inferno – 36ª edição – FEB – cap. 1, item 13.
2 – KARDEC, Allan – A gênese – 21ª edição – FEB – cap. 1.
3 – CAMPOS, Humberto / XAVIER, Francisco Cândido – Brasil coração do mundo, pátria do evangelho.19ª edição – FEB – cap. XXII.
4 – PIRES, J. Herculano – O centro espírita – 3ª edição – LAKE – introdução
5 – CAMPOS, Humberto / XAVIER, Francisco Cândido – Crônicas de além túmulo.1ª edição – FEB – 1937.
6 – KARDEC, Allan – O Evangelho segundo o Espiritismo – 36ª edição – FEB
Sobre o autor:
Afonso Fioravante é Engenheiro, dirigente e expositor Espírita em Timóteo – MG