Aula 15 – O século XIX: Marco de uma nova era

por Maurício Junior

 

As Doutrinas Materialistas

Espiritismo: o Consolador Prometido

 

1 – AS DOUTRINAS MATERIALISTAS

    Em geral, a perspectiva materialista na Filosofia tem surgido da necessidade de afirmar o espírito positivo ou científico contra a mentalidade alienada por forças e motivos religiosos ou metafísicos. É o que se pode presenciar ao tempo dos pensadores pré-socráticos, como Tales de Mileto e Anaximandro. Na primeira fase do despertar da razão, a dualidade de matéria e espírito não estava bem formulada e, por isso, atribuíram à matéria propriedades que pertenciam aos seres vivos, devido mais à dificuldade natural de se conceber outras realidades de natureza não-material.

    Entretanto, é a partir do séc. XVI, iniciando no período renascentista e culminando na Era da Razão, que o movimento materialista ganha força e um corpo doutrinário consistente e sistemático. Isto, devido às grandes mudanças que, pouco a pouco, foram se operando  na Europa abrangendo todas as atividades humanas, quer de cunho social, político, econômico e religioso.

    Cansado de dogmas obscuros, de interesseiras teorias, de afirmações sem provas, o pensamento humano deixou de se empolgar pela dúvida. Uma crítica inexorável joeirou (1) rigorosamente todos os sistemas. A fé se extinguiu em sua própria fonte; o ideal religioso desapareceu.

    Em que se tornaram as civilizações do passado, aquelas em que o indivíduo não se preocupava senão com o corpo, com as suas necessidades e as suas fantasias? Acham-se em ruínas; estão mortas.

    Voltamos a encontrar, precisamente em nossa época, as mesmas tendências perigosas que as perderam: são as que consistem em tornar tudo adstrito à vida material, em constituir objeto e fim da existência tudo aquilo que é percebido tão-somente pelos sentidos físicos. A crítica e a consciência materialistas restringiram os horizontes da vida. Às tristezas da hora presente acrescentaram a negação sistemática, a acabrunhadora ideia do nada. E por esse modo, agravaram todas as misérias humanas; arrebataram ao homem, com as mais seguras armas morais de que dispunha, o sentimento de suas responsabilidades.

    Materialismo é a doutrina filosófica que encara todos os fatos e acontecimentos do universo como explicáveis em termos de matéria e movimento. A explicação materialista reduz, igualmente, todos os processos psíquicos, como o pensamento e os sentimentos, a resultados de mudanças e transformações do sistema nervoso.

    Para esta teoria, a única realidade concreta é a matéria em movimento, a qual, dada a sua riqueza, é capaz de produzir certos efeitos surpreendentes que chamamos de psíquicos ou mentais. As principais correntes do materialismo são:

1. Materialismo cosmológico. É aquele que criou um sistema racional compreensivo do Universo, em que a realidade fundamental é essencialmente material. São numerosos os exemplos deste materialismo, na história da Filosofia: o Atomismo de Demócrito, o sistema estoico, o epicurista, etc.

2. Materialismo científico. Originou-se de certos preconceitos de médicos e fisiologistas do séc. XIX, que relutavam em atribuir os fenômenos da mente ou da vida à alma, ao espírito ou a um princípio vital qualquer. Só aceitavam como realidade o que podia ser tocado pelo bisturi ou visto através do microscópio. Este foi o materialismo de Lamettrie, de d Holbach, de Hume, etc.

3. Materialismo dialético. Como é evidente, o único princípio admitido é a matéria, mas esta se encontra em contínuo movimento dialético (em processo de transformação) pelo qual se constroem e determinam novas realidades do mundo.

    O Materialismo, contudo, pode ser encarado como um postulado metodológico da pesquisa científica. Ao pesquisador compete descobrir os aspectos do mundo acessíveis à nossa experiência.

    O Positivismo, escola filosófica fundada por Augusto Comte (1798-1857), chamada posteriormente Filosofia Científica, considera que o espírito humano atravessa três estados teóricos e distintos – o teológico, o metafísico e o positivo, que, de resto,  são três métodos diferentes de busca do conhecimento -, o Positivismo interpreta o primeiro estado como a “infância da humanidade”. O segundo, de transição, é caracterizado pelo espírito de crítica. O terceiro, finalmente, utilizando processos próprios e científicos, representa a idade madura da humanidade e instala um período fixo e definitivo.

    Essa evolução se acha consubstanciada na “lei dos três estados”, formulada por Comte, espécie de espinha dorsal do Positivismo, cujo maior esforço teria sido o aniquilamento da Teologia e a destruição da Metafísica.

    O resultado dessa atitude foi só considerar verdadeira a filosofia quando aplicada aos fenômenos naturais, os quais se acham sob o império de leis imutáveis. É a negação total do valor de qualquer pesquisa de causas primárias ou finais.

    Para completar o sistema, Comte criou uma nova ciência – a Sociologia – a qual, tratando das relações entre os homens, dispensa toda influência de caráter sobrenatural.

2 – ESPIRITISMO: O CONSOLADOR PROMETIDO

    Para quem quer que observe atentamente as coisas, os tempos em que vivemos estão carregados de ameaças. Parece brilhante a nossa civilização, e, todavia, quantas manchas lhe obscurecem o esplendor! O bem-estar e a riqueza se têm espalhado, mas é acaso por suas riquezas que uma sociedade se engrandece? O objetivo do homem na terra é, porventura, levar uma vida faustosa e sensual? Um povo não é grande, um povo não se eleva senão pelo trabalho, pelo culto da justiça e da verdade.

    Face a essas questões, formula-se a pergunta: Teria falhado o cristianismo na tarefa de ordenar uma sociedade, senão ideal, pelo menos razoavelmente equilibrada e feliz? Teria ainda o cristianismo condições de realizar essa tarefa?

    Sabemos que o cristianismo vigente e aceito pela maioria dos homens não tem respostas adequadas para as mazelas da civilização. O cristianismo que hoje conhecemos é mais uma doutrina sobre o Cristo do que a doutrina de Jesus. A ênfase maior deslocou-se para a figura pessoal de Jesus, como Deus e Messias, nascido sob condições excepcionais e ressuscitado depois de morto, de maneira incongruente, para ser, finalmente, situado no céu, ao lado de Deus-Pai, com o qual seria coeterno. Para alcançar o reinado da paz e da felicidade espiritual que Jesus proclamou, mais uma vez, a ênfase não repousa no exato teor da sua pregação, mas num conjunto de rituais, crenças e sacramentos, administrados e ministrados pela Igreja que ele teria fundado e entregue a Pedro e, por sucessão, aos seus herdeiros, de um reino bem terreno e temporal.

    Mas, se o que temos hoje com o nome de doutrina cristã não é, precisamente, o que Jesus ensinou e pregou, então o que aconteceu? Quando, onde, como e por que o movimento que tomou o seu nome como bandeira começou a afastar-se de suas origens? Por que razão, remontando, hoje, a correnteza caudalosa do movimento cristão, não estamos conseguindo identificá-lo nas fontes de onde pensávamos que ele estivesse jorrando todos esses séculos? Como foi que Jesus acabou divinizado e por que ficou o seu pensamento obstruído por um sistema de ideias que nada têm a ver com ele? A que manipulações foram submetidos os seus ensinamentos a ponto de transformá-los numa teologia irracional? Com que finalidade foram inventados ritos, sacramentos, exclusividade salvacionista? Como foi que, em vez da doutrina do amor, que ele colocou como pedra de toque de tudo quanto ensinou, tenha começado, de repente, a ser imposta uma teologia, literalmente, a ferro e fogo, sangue e lágrimas? Que loucuras foram essas?

    Jesus não fundou a religião do Calvário para dominar os povos e os reis, mas para libertar as almas do jugo da matéria e pregar, pela palavra e pelo exemplo, o único dogma de redenção: o Amor.  Jesus, espírito poderoso, divino missionário, médium inspirado. Veio, encarnando-se entre os humildes, a fim de dar a todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza – vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra inapagáveis traços.

    As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus, foram comunicadas ao mundo em todas as épocas, levadas a todos os meios, postas ao alcance das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem desconhecido muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados, arrastado por suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de grandes coisas sem as ver.

    Por isso, Jesus dirigiu-se aos apóstolos: Se vós me amais, guardai os meus mandamentos, – e pedirei a meu Pai, e Ele vos enviará um outro Consolador, a fim de que permaneça eternamente convosco: O Espírito de Verdade, que este mundo não pode receber, porque não o vê; mas por vós, o conhecereis, porque permanecerá convosco, estará em vós. Mas o Consolador que é o Espírito Santo que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo o que vos disse.

    Esta predição, sem contradita, é uma das mais importantes do ponto de vista religioso, porque constata, da maneira menos equivocada, que Jesus não disse tudo o que tinha a dizer, porque não seria compreendido, mesmo pelos seus apóstolos, uma vez que era a eles que se dirigia. Se lhes tivesse dado instruções secretas, delas fariam menção no Evangelho. Desde que não disse tudo aos seus apóstolos, os seus sucessores não poderiam saber mais do que eles; portanto, puderam se equivocar sobre o sentido de suas palavras, dar uma falsa interpretação aos seus pensamentos, frequentemente velados sob a forma de parábolas. As religiões fundadas sobre o Evangelho não podem, pois, se dizerem na posse de toda a verdade, uma vez que ele reservou para si completar ulteriormente as suas instruções.

    Anuncia ele, sob o nome de Consolador e de Espírito de Verdade aquele que deve ensinar todas as coisas e fazer lembrar o que disse; portanto, o seu ensino não estava completo; além do mais, prevê que se esquecerá o que ele disse, e que se o será desnaturado, uma vez que o Espírito de Verdade deve fazer lembrar, e, de acordo com Elias, restabelecer todas as coisas, quer dizer, segundo o verdadeiro pensamento de Jesus.

    Quando deverá vir esse novo revelador? É muito evidente que, se na época em que Jesus falava, os homens não estavam no estado de compreender as coisas que lhe restavam a dizer, não seria em alguns anos que poderiam adquirir as luzes necessárias. Para a inteligência de certas partes do Evangelho, com exceção dos preceitos de moral, eram necessários que só o progresso da ciência poderia dar, e que deveriam ser obra do tempo e de várias gerações.

    Desde a promessa de Jesus, no Evangelho  de João, até a vinda do Consolador, podemos ver através da História, o trabalho bimilenar de preparação que se realizou, para o seu cumprimento. Após dois mil anos de fermentação histórica, de doloroso amadurecimento do homem, de criminosas deformações da mensagem cristã, afinal se tornava possível o restabelecimento dos ensinos fundamentais em sua pureza primitiva.

    O Espiritismo realiza, assim, todas as condições do Consolador prometido por Jesus. Não é uma doutrina individual, uma concepção humana; ninguém pode dizer-se o seu criador. É o produto do ensino coletivo dos Espíritos, ao qual preside o Espírito de verdade. O Espiritismo vem, portanto, no tempo marcado, cumprir a promessa do Cristo: o Espírito de Verdade preside a sua instituição, chama os homens à observância da lei e ensina todas as coisas em fazendo compreender o que o Cristo não disse senão por parábolas.

    Jesus, dizendo aos seus apóstolos: Um outro virá mais tarde, que vos ensinará o que não posso vos dizer agora, proclamava, por isso mesmo, a necessidade da reencarnação. Como esses homens poderiam aproveitar o ensino mais completo que deveria ser dado ulteriormente; como estariam mais aptos para compreendê-lo, se não devessem reviver? Jesus teria dito uma inconsequência se os homens futuros devessem, segundo a doutrina vulgar, ser homens novos, almas saídas do nada no seu nascimento. Admiti, ao contrário,  que os apóstolos, e os homens de seu tempo, viveram depois; que reviverão ainda hoje, a promessa de Jesus se acha justificada; a sua inteligência, que deve ter-se desenvolvido ao contato do progresso social, pode suportar agora o que não poderia então. Sem a reencarnação, a promessa de Jesus teria sido ilusória.

    Se se dissesse que essa promessa realizou-se no dia de Pentecostes, pela descida do Espírito Santo, responder-se-ia que o Espírito Santo os inspirou, que pôde abrir a sua inteligência, desenvolver neles as aptidões medianímicas que deveriam facilitar a sua missão, mas que nada lhes ensinou a mais do que Jesus havia ensinado, porque não se encontra nenhum traço de ensino especial. O Espírito Santo, pois, não realizou o que Jesus anunciara, do Consolador; de outro modo, os apóstolos teriam elucidado, desde quando vivos, tudo o que permaneceu obscuro no Evangelho até esse dia, e cuja interpretação contraditória deu lugar às inumeráveis seitas que dividiram o Cristianismo desde os primeiros séculos.

    Portanto, a Igreja do Cristo há de ser algo mais, mais e muito melhor que tudo isto. Maior que Roma, maior que Lutero, maior que as demais igrejas que a si próprias dão o título de únicas verdadeiras. Dentro dela hão de caber todos os homens de boa-vontade, chamem-se judeus, protestantes, católicos ou maometanos; doutra sorte não seria baseada na justiça, nem seria universal, caracteres inseparáveis da religião divina.

    O judeu, o muçulmano, o protestante, o budista, o católico, o cismático, que ama a Deus em Espírito e verdade e pratica a virtude, está com Cristo e dentro da verdadeira igreja, porque fora da caridade não há salvação.

(1) Joeirar – Examinar ou averiguar minuciosamente.

 

 TEXTOS EXTRAÍDOS DE:

AMIGÓ Y PELLÍCER, D.José. Roma e o Evangelho.
MIRANDA, Hermínio C. Cristianismo: uma mensagem esquecida.
DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo.
Dicionário Prático Ilustrado. Lello & Irmãos, Porto.
Enciclopédia Barsa.
SAVELLE, Max. História da Civilização Mundial.

 

ANEXO

 

OS CONCÍLIOS

1o. Concílio de Nicéia (325) – proclama que o Filho é consubstancial ao Pai.

1o. Concílio de Constantinopla – decide que a unidade absoluta em Deus é inseparável de uma diversidade igualmente absoluta: o Pai, fonte de divindade, seu Filho e seu Espírito. Neste concílio como no anterior, a decisão é a mesma: o Espírito Santo procede do Pai através do Filho.

Concílio de Éfeso (431) – examina a questão fundamental da união em Cristo do divino e do humano, centro da discórdia entre nestorianos e monofisitas.Enquanto os nestorianos pregavam a dupla natureza de Cristo, os monofisitas acreditavam em sua natureza divina única. O concílio decide preservar o Mistério da Encarnação, que mantém a unidade do divino e do humano em Cristo.

Concílio de Calcedônia (451) – estabelece a base da cristologia ortodoxa: Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, que se apresenta em duas naturezas sem distinção, indivisíveis e inseparáveis, de tal forma que as propriedades de cada uma permanecem ainda mais firmes quando unidas numa só pessoa. Discordando das decisões desse concílio, os monofisitas afastaram-se para compor as Igrejas dissidentes da Síria, da Armênia, do Egito, da Etiópia e da Índia do Sul.

2o. e 3o. Concílios de Constantinopla (553 e 680) – retomam a questão e confirmam a cristologia ortodoxa definida em Éfeso e na Calcedônia. O Concílio de 680 dinamiza a noção da dupla natureza: em Cristo – pela adesão da vontade humana á divina – as energias da divindade e da humanidade se interpenetram, sem que as naturezas se misturem, e a humanidade transfigura-se, como o ferro se torna incandescente e rubto pelo fogo.

2o. Concílio de Nicéia (787) – O Sétimo Concílio Ecumênico, estabelece a veneração das imagens sagradas – os ícones. A graça divina repousa no ícone. Quem o venera, venera a pessoa que nele está representada. Ele é parte integrante da liturgia. Numa perspectiva mais ampla, a Igreja, com sua arquitetura e seus afrescos, representa no espaço o que a palavra litúrgica representa no tempo: o reflexo, a antecipação do Reino de Deus.

Concílio de Lyon (1274) – a doutrina filioquista, elaborada pela teologia latina, segundo a qual o Espírito Santo procede do Pai e do Filho como de um só princípio, é dogmatizada.

Concílio de Florença (1439) – há uma tentativa de concordância doutrinária, mas a convocação desse concílio atendia a necessidades antes políticas que religiosas. O imperador de Bizâncio se submete à autoridade do papado de Roma, numa tentativa de conseguir aliados face ao avanço turco que ameaçava Constantinopla.


 Fonte: BOLETIM GEAE | ANO 09 | NÚMERO 422 | JULHO DE 2001

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