Um exemplo emblemático de preconceito vem de uma acusação de racismo à Kardec. A fonte do problema vem de considerações de Kardec sobre questões étnicas, na época, compreendidas como questões raciais. O problema, é complexo e sensível, por isso precisamos examiná-lo com cuidado e sem pressa. O leitor precisa exercitar sua paciência. Temas como este são delicados. Mexem com nosso acervo de vivências passadas subjetivas, ainda não muito bem resolvidas e bastantes sensíveis a influências interpessoais.
Colocam em xeque nossas convicções. Resultam de ideias e conceitos prévios que afloram em nossas mentes sem que saibamos como controlar e nos conduzem a julgamentos apressados e passionais das coisas. Muita gente vem criticando e depreciando Kardec e o espiritismo, de forma totalmente descuidada e irresponsável, com base em uma ou duas frases tiradas de contexto, sem atentar para toda uma realidade histórica, cultural, científica, filosófica e política vivenciada, não apenas por Kardec, mas por toda a sociedade Europeia da época. É o tipo de crítica vazia que apenas revela o preconceito do crítico despreparado.
Em termos objetivos, sem rodeios ou subterfúgios, Kardec, buscando compreender e explicar as diferenças materiais externas entre as diferentes raças humanas (era assim que a ciência entendia a diversidade humana em meados do século XIX) em contraposição aos princípios doutrinários de igualdade dos espíritos, utilizou-se de palavras e frases que, à luz do entendimento moderno sobre as sociedades humanas, podem ser vistas como tendo uma conotação racista. Sob a luz dos conhecimentos genéticos da moderna ciência, felizmente, ficou provado que não há nenhuma diferença biológica entre negros, brancos, amarelos e indígenas [Raça – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)]. A raça humana é uma só, tornando o termo raça inadequado.
Mas isto é a ciência atual. Kardec, nos dias de hoje, coerente com os princípios doutrinários do espiritismo e com o alinhamento do espiritismo com a ciência, jamais utilizaria os mesmos termos que utilizou em sua época, coerentes com a ciência e cultura de sua época. Ou seja, de forma bastante objetiva e lógica, Kardec não era racista. Mesmo porque o conceito atual de racismo só foi proposto no início do século XX [JEE_Allan_Kardec_a_ciencia_e_o_racismo], anos mais tarde ao desencarne de Kardec. Suas palavras, na época estavam em perfeita sintonia com a ciência e com os usos e costumes. Além disso, independente de teorias científicas e costumes, Kardec não poderia nutrir nenhum tipo de sectarismo. Seria contra os princípios de fraternidade, de amor e de caridade do espiritismo, princípios esses bastante caros para ele. É puro preconceito julgar um indivíduo de uma época sob as lentes de outra época, sobretudo separadas por quase dois séculos . Precisamos tomar muito cuidado com isso. Não podemos admitir uma luta, legítima e absolutamente necessária, contra todas as formas de preconceito, em uma nova forma de preconceito de caráter histórico-cultural.
Vamos a seguir apresentar os principais textos nos quais as palavras de Kardec destoam e assumem um sentido racista sob o entendimento atual. Mas vamos mostrar também, por meio de outros textos de Kardec, que o mesmo, embora sem qualquer possibilidade de compreender a igualdade genética entre todos os seres humanos, enxergou além. Estava convicto da igualdade do espírito, ao contrário de muitas correntes da época. Igualdade no sentido que somos todos espíritos em evolução submetidos às mesmas leis de evolução, enfrentando os mesmos desafios e usufruindo das mesmas oportunidades. Mais ainda, apesar de não contar com subsídios suficientes, Kardec não deixou de criticar os excessos da ciência de sua época. Na verdade, com todo o conhecimento e avanços científicos e civilizatórios já alcançados pela humanidade, causa muito mais repugnância os preconceitos existentes nos dias de hoje do que os existentes na época de Kardec, onde a ignorância era muito maior. Se há hoje o reconhecimento da igualdade genética, as desigualdades sociais e a falta de oportunidades democráticas para todos os encarnados, infelizmente, continua sendo uma terrível chaga social.
Nós espíritas modernos, entendemos que toda a diversidade cultural e social humana, reflete escolhas ditadas pelo livre arbítrio de cada um e pelas oportunidades que se apresentam conforme as necessidades evolutivas do indivíduo. São diferentes caminhos a serem percorridos pelo espírito em sua jornada evolutiva. Não há punições, apenas novas experiências de vida. O mérito está em aproveitar bem as oportunidades que, de um ponto de vista espiritual mais elevado, são iguais para todos. O que não nos isenta de lutar por oportunidades iguais na vida material presente. Tal como dizia Jesus. “Amai vos uns aos outros como eu vos amei” sem distinção de espécie alguma.
O leitor materialista poderia argumentar que, a exemplo de todas as religiões, querer minimizar as desigualdades sociais materiais, e enaltecer a igualdade espiritual, no fundo, seria querer propagandear uma ilusão. Uma desculpa para a omissão dos privilegiados para com os desamparados. Mas se tudo é só matéria, e nada existe além da matéria, sendo a consciência humana mero subproduto da matéria, onde está o livre arbítrio? E, sendo assim, onde está a responsabilidade dos indivíduos se tudo é pré-determinado pelas propriedades intrínsecas da matéria? Mais ainda. Sob a égide de um sistema de competição acirrada dentro do livre mercado, por que os privilegiados deveriam se ocupar com os desamparados? Por que ampliar a concorrência e dificultar a competição?
É importante ter em mente esses conflitos de ideias. É interessante perceber que o tom de ironia acima, por vezes é possível reconhecê-lo nas críticas feitas por Kardec. O objetivo do espiritismo, desde sua sistematização inicial, é o de uma filosofia moral em permanente diálogo com a religião e com a ciência. Busca consolar o indivíduo apresentando-lhe uma nova perspectiva de vida e não uma ilusão dogmática. Pode não haver provas científicas nos moldes das ciências materiais ordinárias, mas o volume de evidências apontando para uma pré-existência e uma pós-existência do espírito relativos à presente vida, vem crescendo enormemente nos últimos anos.
A título complementar, sem entrarmos no mérito e consequências das teorias científicas ultrapassadas da época de Kardec, é importante perceber que a ciência é um arcabouço de conhecimentos que evoluem, são ampliados ou substituídos ao longo do tempo segundo um processo dinâmico permeado de erros e acertos. Vale notar também que, a ciência, em si, é neutra. Seu bom ou mau uso é responsabilidade do ser humano. Kardec, de boa-fé, buscava amparar-se na ciência de sua época. Não fechava os olhos para os excessos, mas não havia como ele virar as costas para a ciência como um todo.
Um outro aspecto que também merece reflexão, é o perfil Revista Espírita editada por Kardec de 1858 à março de 1869. Tratava-se de uma publicação mensal criada pelo codificador, justamente para que ali fossem apresentados artigos e ensaios seus e de outros autores ou comunicações mediúnicas para serem apreciados, questionados e criticados pelo público, após o que, eventualmente, poderiam ser destinados aos livros da codificação. Essas observações devem ser levadas em conta sempre que se queira criticar algum texto de Kardec. Podemos criticá-lo por não ter sido feliz na escolha de certas palavras e frases, mas não podemos acusá-lo de descuido ou orgulho a ponto de deixar de expor seu trabalho à crítica da época.
Vamos apreciar algumas passagens na obra de Kardec que apontam nitidamente para uma postura oposta ao racismo. Comecemos com as questões 52, 53 e 54 do LE (Livro dos Espíritos).
“Q52.: Donde provêm as diferenças físicas e morais que distinguem as raças humanas na Terra?”
“R.: Do clima, da vida e dos costumes. Dá-se aí o que se dá com dois filhos de uma mesma mãe que, educados longe um do outro e de modos diferentes, em nada se assemelharão, quanto ao moral.”
Aqui os espíritos deixam claro a Kardec que as diferenças exteriores se devem apenas a fatores externos. Não dizem respeito à essência do espírito. O exemplo dos dois filhos é prova de que não há diferença intrínseca. O sentido de “moral” no texto acima refere-se justamente aos hábitos culturais.
“Q53:- O homem surgiu em muitos pontos do globo?
“R.: Sim e em épocas várias, o que também constitui uma das causas da diversidade das raças. Depois, dispersando-se os homens por climas diversos e aliando-se os de uma aos de outras raças, novos tipos se formaram.”
“Q53a) — Estas diferenças constituem espécies distintas?
“R.: Certamente que não; todos são da mesma família. Porventura as múltiplas variedades de um mesmo fruto são motivo para que elas deixem de formar uma só espécie?”
“Q54: Pelo fato de não proceder de um só indivíduo a espécie humana, devem os homens deixar de considerar-se irmãos?
“R.: Todos os homens são irmãos em Deus, porque são animados pelo espírito e tendem para o mesmo fim. Estais sempre inclinados a tomar as palavras na sua significação literal.”
Percebe-se que as respostas dos espíritos nas questões 53 e 54 não denotam nenhum traço de discriminação entre as raças ou etnias. Os espíritos reconhecem que existem diferenças externas por causas naturais, mas não guardam relação com os atributos inerentes do espírito. Somos todos irmãos evoluindo para um mesmo fim. Pode-se ver também que as respostas dos espíritos estão em plena concordância com as teorias modernas sobre a evolução do Homo sapiens.
Modernamente, a opinião dominante entre os cientistas sobre a origem dos seres humanos é a “hipótese da origem única”, que argumenta que o Homo sapiens surgiu na África e migrou para fora do continente entre 50.000 e 100.000 anos, substituindo as populações de Homo erectus na Ásia e de Homo neandertalenses na Europa. Mas há também correntes que apoiam a “Hipótese multirregional” alegando que o Homo sapiens evoluiu em regiões geograficamente separadas [Evolução humana – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)]. É admirável como a resposta dos espíritos contemplam as duas hipóteses modernas.
As questões 216 e 217 também merecem uma análise. Por meio delas Kardec explora um pouco mais a questão das raças humanas.
“Q216.: Em suas novas existências conservará o Espírito traços do caráter moral de suas existências anteriores?
“R.: Isso pode dar-se. Mas, melhorando-se, ele muda. Pode também acontecer que sua posição social venha a ser outra. Se de senhor passa a escravo, inteiramente diversos serão os seus gostos e dificilmente o reconheceríeis. Sendo o Espírito sempre o mesmo nas diversas encarnações, podem existir certas analogias entre as suas manifestações, se bem que modificadas pelos hábitos da posição que ocupe, até que um aperfeiçoamento notável lhe haja mudado completamente o caráter, porquanto, de orgulhoso e mau, pode tornar-se humilde e bondoso, se se arrependeu.”
“Q217.: E do caráter físico de suas existências pretéritas conserva o Espírito traços nas suas existências posteriores?
“R.: O novo corpo que ele toma nenhuma relação tem com o que foi anteriormente destruído. Entretanto, o Espírito se reflete no corpo. Sem dúvida que este é unicamente matéria, (grifo meu) porém, nada obstante, se modela pelas capacidades do Espírito, que lhe imprime certo cunho, sobretudo ao rosto, pelo que é verdadeiro dizer-se que os olhos são o espelho da alma, isto é, que o semblante do indivíduo lhe reflete de modo particular a alma. Assim é que uma pessoa excessivamente feia, quando nela habita um Espírito bom, criterioso, humanitário, tem qualquer coisa que agrada, ao passo que há rostos belíssimos que nenhuma impressão te causam, que até chegam a inspirar-te repulsão. Poderias supor que somente corpos bem moldados servem de envoltório aos mais perfeitos Espíritos, quando o certo é que todos os dias deparas com homens de bem, sob um exterior disforme. Sem que haja pronunciada parecença, a semelhança dos gostos e das inclinações pode, portanto, dar lugar ao que se chama ‘um ar de família’.”
Percebe-se que na questão 216 Kardec está preocupado com o caráter do espírito e se isto pode ser reconhecido entre uma encarnação e outra. A resposta deixa claro que pode haver traços perceptíveis, mas, em geral, mesmo quando o espírito muda completamente seu status social e intelectual, dificilmente será possível se reconhecer alguma relação entre a aparência externa e os aspectos intrínsecos do espírito. Além disso, a mudança completa de status social, mostra muito bem que não há relação direta entre atributos materiais e atributos espirituais. Isso vem ao encontro de nossa percepção moderna de que não há retrogradação nem grandes saltos na evolução do espírito, apenas oportunidades materiais diferentes para aprendizagem. Posto de outra forma, um magnata milionário com pós-graduação em Harvard e um humilde e analfabeto pedinte de rua, podem ter seus papeis completamente trocados de uma encarnação para outra, sem que isso possa ser identificado por traços exteriores.
A questão 217 complementa a 216 deixando claro que o caráter do espírito pode refletir-se de algum modo em alguns de seus traços físicos, mas não há nenhuma relação direta que permita julgar o caráter e o potencial do espírito com base em sua aparência física, como a cor da pele, por exemplo. Modernamente poderíamos mencionar o físico inglês falecido em 2018, Stephen Hawking, um gênio que trouxe enorme contribuição à ciência e que passou boa parte da vida em uma cadeira de rodas, deformado, tetraplégico e sem a capacidade da fala. Uma aparência física desprovida de qualquer atrativo, habitada por um grande intelecto, em perfeito acordo com o exposto nesta questão 217. Isto é apenas um exemplo bem conhecido dentre milhares de outros. Acrescentamos ainda uma passagem do ESE (Evangelho Segundo o Espiritismo) sobre o homem de bem no cap. XVII, “O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus”.
As questões acima nos ajudam a compreender qual era a visão de Kardec relativo às raças humanas. Na época supunha-se a existência de várias raças humanas diferentes. Kardec entendia que o espiritismo e a ciência deveriam e devem marchar lado a lado. No tocante ao mundo material o espiritismo deve respeitar e apoiar-se na ciência material. No tocante ao espírito, o espiritismo é a nova ciência que se propõe a desbravar esse universo buscando pesquisar e compreender o mundo espiritual e suas relações com o mundo material, sem contudo, contrariar os conhecimentos da ciência material, pois espírito e matéria estão sob as mesmas leis da natureza. Nesse sentido, Kardec procura olhar para as questões raciais buscando estabelecer a harmonia entre a visão das ciências materiais de sua época com a visão da ciência espírita. Kardec, sabia muito bem que o espírito não tem sexo, não tem corpo de carne coberto de pele, muito menos cor de pele. A evolução moral e intelectual do espírito não pode ser compreendida de forma plena e segura, por meio dos atributos materiais externos dos indivíduos. As questões acima do LE deixam bem claro esse aspecto. Qualquer traço físico que se queira considerar como indicativo do caráter do espírito pode levar a enormes equívocos. Com essas considerações em mente, podemos entender a relação de Kardec com a frenologia, considerada na época como ciência.
São ainda significativas para nosso contexto as questões 831 e 832 do LE. Nelas os espíritos deixam claro a completa insensatez daqueles que se julgam superiores, escravizarem aqueles que se supõe sejam inferiores.
Vamos ver mais um texto significativo do pensamento de Kardec, publicado na Revista Espírita de fevereiro de 1862, sob o título: “A escravidão”. Seu teor é o que segue: “Escravidão! Quando se pronuncia este nome, o coração sente frio, porque vê à sua frente o egoísmo e o orgulho. Quando um padre vos fala de escravidão, está se referindo à escravidão da alma, que avilta o Espírito do homem e o faz esquecer a sua consciência, isto é, sua liberdade. Oh! sim, esta escravidão da alma é horrível e diariamente excita a eloquência de mais de um pregador. Mas a escravidão do hilota, a escravidão do negro, que se torna aos seus olhos? Diante desta questão o sacerdote mostra a cruz e diz: “Esperai!” Com efeito, para esses infelizes, é a consolação a oferecer, e ela lhes diz: “Quando o vosso corpo for dilacerado pelo chicote até a morte, não penseis mais na Terra; pensai no Céu.” Tocamos aqui uma dessas questões graves e terríveis que transtornam a alma humana e a precipitam na incerteza. Estará o negro à altura dos povos da Europa, e a prudência humana, ou, antes, a justiça humana deverá mostrar-lhe emancipação como o meio mais seguro de alcançar o progresso da civilização? Nesta questão os filantropos apresentam o Evangelho e dizem: Jesus falou de escravos? Não; mas Jesus falou da resignação e disse estas sublimes palavras: “Meu reino não é deste mundo.” John Brown, quando contemplo o teu cadáver na forca, sinto-me tomado de profunda piedade e de apaixonada admiração; mas a razão, esta brutal razão que incessantemente nos faz buscar os porquês, leva-nos a nos perguntar a nós mesmos: “Que teríeis feito depois da vitória?.” (grifos meus) O artigo é assinado por Allan Kardec.
Neste texto, Kardec mostra bem seu lado humano. Um ser humano normal, sensível às injustiças sociais à sua volta – “Escravidão! Quando se pronuncia este nome, o coração sente frio, porque vê à sua frente o egoísmo e o orgulho”. Um ser Humano comprometido com uma missão e com a ciência de sua época, mas que não se esquivava de criticar a igreja por sua posição omissa frente a escravidão. Os dizeres finais de Kardec são de uma clareza retumbante quanto à sua posição antiescravagista. Sua manifesta admiração por John Brown [John Brown (abolicionista) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)], um abolicionista norte-americano radical, herói para alguns e vilão para outros, condenado à forca por suas ações violentas em prol da libertação dos escravos, dispensa qualquer argumento adicional em defesa da posição antirracista de Kardec. Mas Kardec vai um pouco além. Racionalmente, toca um ponto importante: “Que teríeis feito depois da vitória?”. Essa questão importa e muito. Que deveria ter sido feito após a libertação dos escravos? Essa é uma questão que tem merecido crítica no Brasil. A lei áurea de 1888 libertou os escravos, mas abandonou-os a própria sorte. Isso teve consequências. Como esperar progresso de alguém a quem se negue oportunidades e condições dignas mínimas para viver e progredir?
Outra passagem que, de forma inquestionável, mostra a posição antirracista de Kardec encontra-se na Revista Espírita de outubro de 1861, onde destacamos o seguinte trecho extraído de um longo discurso que ele proferiu por ocasião de sua visita aos espíritas lioneses no mês anterior: “o Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiro papel na Criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, faz com que desapareçam, naturalmente, todas as distinções estabelecidas entre os homens, conforme as vantagens corporais e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor”.
Kardec considerava estúpido o preconceito de cor e de castas, mesmo com supostas vantagens corporais admitidas pela ciência da época. Sensibilizava-se com o peso da ideia da escravidão; nutria grande admiração pelo abolicionista John Brown; já tinha trabalhado com as questões 52,53,54,216,217, 831 e 832 comentadas acima que indicam que a fraternidade, o amor e a caridade devem ser o cimento das relações sociais. Diante disto, não é estranho vê-lo, sob o prisma atual, como um racista na sua época? Além disso, se formos considerar Kardec racista em sua época, cabe a pergunta: quem não era racista? Haveria naquela época alguém que não fosse racista pelos parâmetros de hoje? O simples fato de se acreditar que havia diferentes raças humanas, hoje caracterizaria racismo, mas na época era aceito como verdade científica. Vale lembrar que na época em que Kardec trabalhava com a codificação, já não havia escravos na França. Foram libertos completamente, inclusive das colônias, em 1848. Nessa época, até 1888, aqui no Brasil, tínhamos escravos em nossas casas e fazendas. Claro que o racismo de um povo de uma época não justifica o racismo de outro povo de outra época. Mas também não se justifica o combate ao racismo com a instituição de um tribunal para julgar pessoas de 150 anos atrás, hipoteticamente racistas sob o entendimento atual.
Alguns autores costumam advogar que o fato da ciência ter admitido no século XIX a existência de diferentes raças humanas do ponto de vista biológico, caracterizou uma forma de racismo científico. Esse conceito não tem o mesmo peso ideológico negativo do conceito moderno de racismo, mas entende-se que tenha justificado o colonialismo europeu na África e nas Américas e contribuído para o racismo nos dias de hoje. O assunto é complexo, mas não é queimando os livros de história que iremos construir o futuro. Neste contexto, examinando com cuidado o trabalho de Kardec, fica cada vez mais evidente que ele era um homem a frente do seu tempo.
Vamos finalmente aos textos citados pelos críticos de Kardec. Iniciamos com a frenologia, criada em 1796 pelo alemão Franz Joseph Gall, tendo exercido alguma influência na psiquiatria e psicologia do século XIX, sobretudo entre 1810 e 1840. O rigor metodológico da frenologia era questionável até para os padrões da época, sendo considerada pseudocientífica por diversos autores da segunda metade do século XIX [Evolução humana – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)]. Kardec chegou a interessar-se pela frenologia. Foi inclusive membro da Sociedade Frenológica de Paris [De Rivail a Kardec, coleção CSI v.2 – Carlos Seth, item 9 pag. 61. 1ª edição – São Paulo, outubro de 2020. Distribuição gratuita com o consentimento do autor: Portal Luz Espírita e Autores Espíritas Clássicos].
O texto emblemático está na RE de abril de 1862, “Frenologia Espiritualista e Espírita – Perfectibilidade da Raça Negra”. Por coincidência ou conspiração do destino, exatamente dois meses após o artigo “Escravidão” e menos de dois anos após todas as questões do O Livro dos Espíritos.
O artigo começa com a seguinte pergunta e resposta: “A raça negra é perfectível? Segundo algumas pessoas, esta questão é julgada e resolvida negativamente. Se assim é, e se esta raça é votada por Deus a uma eterna inferioridade, segue-se que é inútil nos preocuparmos com ela e que devemos nos limitar a fazer do negro uma espécie de animal doméstico, preparado para a cultura do açúcar e do algodão. Entretanto a Humanidade, tanto quanto o interesse social, requer um exame mais cuidadoso”.(grifo meu)
O leitor deve julgar por si mesmo, mas com base no já visto é bastante plausível entender que Kardec está usando de um tom crítico sarcástico, colocando ênfase proposital nas palavras e ideias que queria criticar. Isso fica mais evidente quando se lê o artigo na sua íntegra. A frase usada por Kardec: “segundo algumas pessoas a questão estava resolvida negativamente”, é típica de uma ironia. Com certeza não expressam o sentimento de Kardec. Ele estava externando a opinião de pessoas da época, alinhadas com uma visão puramente materialista do assunto. Estava afirmando, em tom crítico, uma realidade que de fato existia na época, sem rodeios, sem meias palavras.
É importante que o leitor perceba que não estamos tentando construir, artificialmente, uma desculpa para Kardec. Ele não precisa disso. Estamos apenas procedendo a uma análise lógica, racional, amparada na própria codificação, do texto de Kardec. É impensável achar que Kardec, dois meses após ter escrito um artigo contra a escravidão, fosse posicionar-se em termos favoráveis e ela.
E só para reforçar o cuidado de Kardec, na sequência do primeiro parágrafo destacado acima, seguindo as palavras “…exame mais cuidadoso”, tem-se o seguinte: “É o que tentaremos fazer. Mas como uma conclusão desta gravidade, num ou noutro sentido, não pode ser tomada levianamente e deve apoiar-se em raciocínio sério, pedimos permissão para desenvolver algumas considerações preliminares, que nos servirão para mostrar, mais uma vez, que o Espiritismo é a única chave possível de uma multidão de problemas, insolúveis com o auxílio dos dados atuais da Ciência (grifo meu). A frenologia nos servirá de ponto de partida. Exporemos sumariamente as suas bases fundamentais para melhor compreensão do assunto”.
Aqui Kardec se posiciona muito bem, firmando seu entendimento quanto a gravidade do tema e alertando que a única chave possível para explicação desse problema é o espiritismo. Ele está se referindo, obviamente, à questão da raça negra ser considerada, na época, uma raça inferior, de acordo com o entendimento cientifico vigente. Era uma tarefa complexa. Kardec era um homem de ciência. Acreditava na ciência, mas também acreditava nos princípios de amor e caridade do espiritismo. Ele tentava harmonizar as coisas, buscar um diálogo possível. Ele usou a frenologia, na época, com chancela de ciência, como ponto de apoio para seus argumentos. Muita gente de dentro e de fora do espiritismo, apressadamente, viu em Kardec um adepto incondicional da frenologia e, por dedução, racista, o que, como estamos percebendo, não corresponde à verdade.
Kardec usou alguns parágrafos sobre a frenologia, esclarecendo que a mesma se apoiava no princípio de que o cérebro era o órgão do pensamento. Cada parte do cérebro era responsável por uma função diferente no organismo. As várias e diferentes ramificações nervosas que partiam do cérebro e se dirigiam às diferentes partes do organismo eram afetadas de modo diferente pelo meio externo. Kardec colocava que a frenologia, pautada nessas premissas ia longe. É lícito supor que talvez ele quisesse dizer que ia longe demais. Pretendia localizar no cérebro as porções responsáveis pelo caráter e pelo intelecto do indivíduo. Após detalhar com alguns exemplos, Kardec afirma que seria um engano acreditar poder deduzir o caráter absoluto de uma pessoa pela simples inspeção das saliências do crânio.
Após mais alguns exemplos, Kardec conclui que as observações frenológicas práticas apresentavam grandes dificuldades e repousavam sobre considerações filosóficas, que não estavam ao alcance de todos. Em seguida, Kardec aponta a existência de duas correntes radicalmente opostas dentro da frenologia. Uma materialista e outra espiritualista. Um dado curioso é que, embora a frenologia tenha sido considerada uma pseudociência e seu idealizador um charlatão, atualmente ela é considerada a precursora da moderna neuropsicologia [Evolução humana – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)]. Aliás vale registrar que a frenologia materialista combatida por Kardec, parte da mesma premissa adotada pela corrente principal da moderna neurociência, isto é, o pensamento é um subproduto do cérebro. Para Kardec, essa consideração tirava do indivíduo toda sua responsabilidade e méritos. Era uma monstruosidade segundo palavras do próprio Kardec. Com relação à frenologia espiritualista, Kardec via um outro problema. Essa corrente aceitava a existência da alma como sede do pensamento, mas de modo diferente da proposta espírita. Não contemplava a anterioridade do espírito. Para Kardec, só o espiritismo explicava as questões relativas aos dons e habilidades do espírito. Kardec não dispunha de meios seguros para perceber que a diversidade humana não representava uma hierarquia material entre raças inferiores e superiores. Isso era o equívoco científico da época. Kardec tentou resolver a questão sob a ótica espírita, acreditando que, materialmente, as raças poderiam evoluir por miscigenação, mas não por si mesmas.
Poder-se-ia perguntar por que os espíritos não resolveram a questão para Kardec? Por que os espíritos não instruíram Kardec de que a diversidade humana não implicava hierarquia de raças, apenas diferenças circunstanciais? Evidentemente, não podemos responder pelos espíritos, mas podemos imaginar duas possibilidades. Em primeiro lugar, é razoável supor que os espíritos não deveriam estar autorizados a nos responder todas as perguntas pelo simples fato que, cabe a nós, espíritos encarnados em evolução, buscarmos a solução dos nossos problemas. Uma segunda possibilidade seria não ser o momento adequado, no entendimento dos espíritos, para abordagem desses aspectos.
Vale também uma leitura do artigo “Frenologia e Fisiognomonia” RE, julho de 1860, onde Kardec apresenta mais algumas considerações críticas à frenologia e à fisiognomonia de Lavater [Johann Kaspar Lavater – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)]. Kardec era uma pessoa bastante justa e sensata. Ele criticava, mas não deixava de apontar os eventuais aspectos positivos.
Passemos ao exame do artigo “Teoria da Beleza”, publicado, postumamente, na RE de agosto de 1869. Lembremos que Kardec desencarnou em março de 1869. O mesmo artigo está também em Obras Postumas, publicado em 1890. É fundamental que o leitor não deixe de ler a nota de número 29 na bem como a nota explicativa de número 60, ambas da RE de agosto de 1869.
O simples fato desse artigo, “Teoria da beleza” ter sido publicado após a morte de Kardec, nos convida a pensar se Kardec iria publicá-lo, pois, sensato como já havia se revelado muitas outras vezes, procurava amadurecer bem suas considerações antes de publicá-las. Nesse ensaio, provavelmente, um esboço ou rascunho para futura revisão, Kardec apresenta considerações extraídas do livro “As Revoluções Inevitáveis no Globo e na Humanidade”, de Carlos Richard. Esse livro chamou a atenção de Kardec pela proposta do autor. “O autor combate a opinião dos que sustentam a degenerescência física do homem, desde os tempos primitivos; refuta vitoriosamente a crença na existência de uma primitiva raça de gigantes e empreende provar que, do ponto de vista físico e do talhe, os homens de hoje valem os antigos, se é que não os ultrapassam”.
Como se vê, o livro citado acima vem ao encontro das ideias de Kardec sobre a evolução do espírito e do corpo físico. Kardec prossegue replicando uma série de trechos do livro que vai apresentado diversos tipos físicos de personalidades históricas desde os gregos até o século XIX, mostrando que essa evolução é muito lenta e difícil de ser percebida com clareza. Trata-se de um processo lento, mas seguro nas palavras do autor, C. Richard. O autor chega a mencionar as descobertas de fósseis humanos dando conta da verdadeira longevidade da raça humana e de quanto o aspecto físico evoluiu.
Após replicar vários trechos da obra, Kardec acrescenta que, com base nas detalhadas e bem exemplificadas colocações do autor e na compreensão trazida pela doutrina espírita acerca da evolução do ser humano, parecia-lhe acertado concluir que a beleza física guardava relação com a evolução do espírito. No artigo é afirmado que o mesmo foi lido em sessão da Sociedade Espírita, provavelmente em fins de 1868 ou em janeiro de 1869, mas não há informação sobre isso. O que se sabe é que o artigo provocou inúmeras reações de todos os lados, com muitas comunicações mediúnicas a respeito. A RE apresenta apenas duas dessas comunicações alegando que as demais são semelhantes. Essas duas comunicações mediúnicas são de fevereiro de 1869, por isso pode-se depreender que a leitura se deu no período acima citado.
Chama a atenção o fato de que nas duas mensagens não se faz referência as alegações de Kardec relativas à raça negra. Ao contrário, a primeira comunicação obtida pela médium Sra. Malet e assinada pelo espírito Panphile, faz referência à humanidade como um todo “Se, nas vossas sociedades infelizes, no vosso globo ainda mal equilibrado, a espécie humana está tão longe dessa beleza física, é porque a beleza moral ainda está em começo de desenvolvimento” O espírito prossegue comentando as relações entre beleza física e perfeição do espírito, mas o faz indicando-nos que a beleza de que fala não é a estética ordinária e subjetiva, mas sim um estado de beleza moral. Acrescenta mais quase ao fim da comunicação o seguinte: “Mais adiantados também em bondade, os vossos descendentes farão desta infeliz terra o que não haveis sabido fazer: um mundo ditoso, onde o pobre não será repelido, nem desprezado, mas socorrido por vastas e liberais instituições. Já desponta a aurora dessas ideias; chega-nos, por momentos, a claridade delas”.
A segunda mensagem é assinada pelo espírito Lavater, ao que tudo indica, o mesmo criador da fisiognomonia em fins do século XVIII. A fisiognomonia buscava estabelecer relações entre o caráter dos indivíduos com base nos traços fisionômicos. Aqui também não se encontra uma referência explícita à raça negra. Lavater apresenta uma série de considerações sobre a relatividade da beleza afirmando que em toda a criação pode-se ver a beleza da harmonia e da manifestação divina.
O fato de que as duas comunicações não fazem qualquer menção à raça negra, pode indicar que o texto lido na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não tenha sido exatamente este. Mas isso é apenas uma hipótese que todavia, encontra amparo em outras considerações. Kardec tinha ciência da pluralidade das existências e da pluralidade dos mundos habitados. Evidentemente, um espírito mais evoluído que o espírito terrestre, habitante de um outro astro com condições ambientais completamente diferentes do ambiente terrestre, há de ter uma constituição física mais perfeita que a nossa, mas em acordo com as condições locais, de modo que, em termos de beleza pode ser completamente destoante do nosso ideal pré-concebido de beleza física.
Aqui entra novamente o nosso grande desafio. O preconceito. E nesse campo, Kardec mostrou em várias ocasiões que era um homem a frente do seu tempo, dando provas de não compartilhar muitos dos preconceitos de sua época. Mostra na RE de janeiro de 1866 que sob o prisma espírita, a mulher não só tinha alma (coisa ainda discutida por muitos naquela época), mas deveria ter os mesmos direitos do homem. Nesse mesmo artigo, define que o espírito não tem sexo e pode assumir qualquer sexo que considere apropriado à sua evolução. Quando o espírito passa várias encarnações sob um mesmo sexo no corpo carnal, pode trazer traços desse sexo para uma nova encarnação sob outro sexo, ensejando uma identidade emocional e psicológica de gênero diferente da identidade anatômica e nada há de anormal nisso que justifique os preconceitos que grassam por aí.
É sob essa ótica, bastante rica de exemplos do caráter desprendido, humilde e livre de muitos dos preconceitos que ainda resistem em meio à nossa sociedade, que os textos de Kardec devem ser examinados e compreendidos. Não se pode negar que algumas de suas palavras relativas à essa ideia acarretam impacto negativo, como na frase: “O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino”.
Por tudo que se sabe sobre Kardec, essas palavras não combinam de modo algum com o caráter do codificador. Kardec estava convencido da perfectibilidade acessível a todos os seres humanos de todas as raças sem exceção. Kardec, fiel aos conhecimentos científicos de sua época, acreditava que a diversidade humana refletia diferentes estágios evolutivos do espírito. Isso não deixa de ser verdade, mas sob uma perspectiva completamente diferente. Nada tem a ver com traços físicos e muito menos com ideais subjetivos de beleza, mas sim com as condições e desafios que o espírito deve enfrentar. Também não podemos esquecer que ele tinha muitas críticas à frenologia e à fisiognomonia por seus excessos, permitindo supor que o texto acima possa ser uma crítica em tom irônico que ele não conseguiu concluir.
Acusar Kardec de racismo é leviandade e sinal de preconceito de quem acusa. Não podemos exigir que ele pensasse e entendesse o mundo de sua época do modo como nós pensamos e entendemos o mundo de hoje, se para nós ainda é complicado um entendimento mais profundo e amplo dos preconceitos raciais, ideológicos e de gênero que, infelizmente, ainda assolam nossa sociedade. Como podemos cobrar isso no século XIX. O que, claro, não deve ser confundido com uma vista grossa com aqueles que abusaram da força, torturando e matando irmãos negros, indígenas, brancos ou amarelos, por conta de intolerância de qualquer espécie. A questão do racismo é uma questão da mais alta seriedade e, infelizmente ainda mal compreendida no mundo e no Brasil [Existe Racismo no Brasil? | Leandro Karnal – YouTube]
Ressaltamos, finalmente, o espírito desapegado, humilde e aberto de Kardec. Ele nunca se proclamou perfeito e infalível. São suas as palavras: “Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará” GE (Gênese) cap. I.
Assim, se qualquer colocação dele mostrar-se inadequada aos tempos modernos, ele próprio indicou o caminho a seguir. Isso só engrandece o espiritismo. A compreensão atual da diversidade humana aliada aos princípios espíritas nos abre enormes possibilidades contra os preconceitos.
Amigos espiritas e não espíritas!
Amai-vos uns aos outros! Eis o primeiro mandamento!
Instrui-vos! Eis o segundo mandamento!
As referências complementares:
a- Espírito da coisa 011 – Kardec era racista? – YouTube
b- TED: Kardec era racista? – YouTube
c- Relações Étnico-Raciais – Prof°. Dr. Kabengele Munanga – YouTube