A reforma íntima é um
trabalho processual. Processual significa aquilo que obedece a uma
seqüência. Em conceito bem claro, é a habilidade de
lidar com as características da personalidade melhorando os
traços que compõe suas formas de
manifestação. Caráter, temperamento, valores,
vícios, hábitos e desejos são alguns desses
caracteres que podem ser renovados ou aprimorados.
Nessa saga de mutação e crescimento, o maior
obstáculo a transpor é o interesse pessoal, o conjunto de
viciações do ego repetido durante variadas
existências corporais e que cristalizaram a mente nos
domínios do personalismo.
O hábito de atender incondicionalmente as
imposições dos desejos e aspirações
pessoais levou-nos à cruel escravização, da qual
muito será exigido nos esforços reeducativos para nos
libertarmos do "império do eu".
Negar a si mesmo ou "despersonificar-se", esvaziar-se de "si", tirar a
máscara é o objetivo maior da renovação
espiritual. Esse o grande desafio a ser seguido por todos os que se
comprometeram com seriedade nas nobres finalidades do Espiritismo com
Jesus e Kardec.
Extenso será esse caminho reeducativo na vitória sobre
nossa personalidade manhosa e talhada pelo egoísmo...
O meio prático e eficaz de consegui-lo, conforme ensinam
os Bons Espíritos da codificação, é o
conhecimento de si mesmo
[1].
Entretanto, para levar o homem ao aprimoramento, o autodescobrimento
exige uma nova ética nas relações consigo e com a
vida: é a ética da transformação, sem a
qual a incursão no mundo íntimo pode estacionar em mera
atitude de devassar a subconsciência sem propósitos de
mudança para melhor. O Espiritismo é inesgotável
manancial no alcance desse objetivo. Seu conteúdo moral é
autêntico celeiro de rotas para quantos desejam assumir o
compromisso de sua transformação pessoal com
segurança e equilíbrio. Sem psicologismo ou atitudes de
superfície, a Doutrina Espírita é um tratado de
crescimento integral que esquadrinha os vários níveis
existenciais do ser na ótica imortalista.
Nem sempre, porém, verifica-se tanta clareza de
raciocínios entre os espiritistas acerca dessa questão.
Conceitos mal formulados sobre o que seja a renovação
interior têm levado muitos corações sinceros a
algumas atitudes de puritanismo e moralismo, que não
correspondem ao lídimo trabalho transformador da personalidade,
em direção aos valores capazes de solidificar a paz, a
saúde e a liberdade na vida das criaturas. Por esse motivo,
será imperioso que as agremiações do mundo,
erguidas em nome do Espiritismo ou aquelas outras que expandam a luz da
espiritualização entre os homens, investiguem melhores
noções sobre a ética da
transformação, a fim de oferecer a seus profitentes uma
base mais cristalina sobre os caminhos e percalços no
serviço da iluminação de si mesmos.
A prática essencial e meta fundamental dos ensinos dos Bons
Espíritos são a melhora da humanidade, a
formação do
homem de bem.
O Espiritismo, em verdade, está nos elos que criamos, uns com os
outros, e que passam a fazer parte da personalidade nova que estamos
esculpindo com o buril da educação. Os "ritos" ou
práticas doutrinárias são recursos
didáticos para o aprendizado do amor - finalidade maior de nossa
causa. Na falta do amor, as práticas perdem seu sentido divino e
primordial.
Em face dessas reflexões, evidencia-se a urgência da
edificação de laços de afeto nos grupamentos
humanos, no intuito de fixarmos na intimidade as mensagens do Evangelho
e do bem universal. Afeto é a seiva vitalizadora dos processos
relacionais e o construtor de sentidos nobres para a existência
dos homens.
O autoconhecimento, através das luzes de imortalidade que se
espraia dos fundamentos espíritas, é um mapa de como
chegar ao "eu verdadeiro", à consciência. Todavia, essa
viagem não pode ser feita somente com o mapa, necessita de
suprimentos morais preventivos e fortalecedores, necessita de uma
ética de paz consigo próprio. Somente se conhecer
não basta, é necessário um intenso labor de
auto-aceitação para não cairmos nas garras de
perigosas ameaças nessa "viagem de retorno a Deus", cujas mais
conhecidas são a culpa, a autopunição e a baixa
auto-estima, as quais estabelecem o clima psicológico do
martírio. É preciso uma ética que assegure
à transformação pessoal um resultado libertador de
saúde e harmonia interior. Tomar posse da verdade sobre si mesmo
é um ato muito doloroso para a maioria das criaturas.
À guisa de sugestões maleáveis, consideremos
alguns comportamentos que serão efetivos roteiros de combate,
vigília e treinamento para instauração das linhas
éticas no processo autotransformador:
Postura de aprendiz - jamais
perder o viçoso interesse em buscar o novo, o desconhecido.
Sempre há algo para aprender e conceitos a reciclar. A postura
de aprendiz se traduz no ato da curiosidade incessante, que brota da
alma como sendo a sede de entender o universo e nossa parte na
"dança dos ritmos cósmicos". Romper com os preconceitos e
fugir do estado doentio da auto-suficiência.
Observação de si mesmo
- é o estudo atento de nosso mundo subjetivo, o conhecimento das
nossas emoções, o não julgamento e a
auto-avaliação constante. Tendemos a avaliar o
próximo e esquecer do serviço que nos compete, no
entanto, relembremos que perante a imortalidade só responderemos
por nós, no que tange ao serviço de
edificação dos princípios do bem na intimidade.
Renúncia - a
mudança íntima exige uma seletividade social dos
ambientes e costumes, em razão dos estímulos que produzem
reflexos no mundo mental. No entanto, a renúncia deve ampliar-se
também ao terreno das opiniões pessoais e valores
institucionais, para os quais, freqüentemente, o orgulho nos ilude.
Aceitação da sombra -
sem aceitação da nossa realidade presente, poderemos
instaurar um regime de cobranças injustas e intermináveis
conosco e posteriormente com os outros. A mudança para melhor
não implica em destruir o que fomos, mas dar nova
direção e maior aproveitamento a tudo que conquistamos,
inclusive nossos erros.
Autoperdão - a
aceitação, para ser plena, precisa do perdão.
Recomeço é palavra de ordem nos serviços de
transformação pessoal. Sem ela o sofrimento e a
flagelação poderão estipular provas dolorosas
para a alma. É uma postura de perdão às faltas que
cometemos, mas que gostaríamos de não cometer mais.
Cumplicidade com a decisão de crescer -
o objetivo da renovação espiritual é gradativo e
exige devoção. Não é serviço para
fins de semana durante a nossa presença nas tarefas do bem, mas
serviço continuado a cada instante da nossa vida, onde
estivermos. Somente assumindo com muita seriedade esse desafio o
levaremos avante. Imprescindível a atitude de comprometimento
com a meta de crescimento que assumimos. Somos egressos de
experiências frustradas no desafio do aperfeiçoamento
pessoal, portanto, muito facilmente somos atraídos para
ilusões variadas. Somente com severidade e muita disciplina
construiremos o homem novo almejado.
Vigilância - é a
atitude de cuidar da vida mental. Cultivar o hábito da higiene
dos pensamentos, da meditação no conhecimento de si, da
absorção de nutrição mental digna nas boas
leituras, conversas, diversões e ações sociais.
Vigilância é a postura da mente, alerta, ativa, sempre
voltada a ideais enriquecedores.
Oração - é
a terapia da mente. Sem oração dificilmente recolheremos
os germens divinos do bem que constituem as correntes de Energia
Superior da Vida. Através dela, igualmente, despertamos na
intimidade forças nobres que se encontram adormecidas ou
sufocadas pelos nossos descuidos de cada dia.
Trabalho - os Sábios Guias da codificação asseveram que
toda ocupação útil é trabalho[2].
Dar utilidade a cada momento dos nossos dias é sublime
investimento de segurança e defesa aos projetos de crescimento
interior.
Tolerância - toda
evolução é concretizada na tolerância. Deus
é tolerância. Há tempo para tudo e tudo tem seu
momento. Os objetivos da melhoria requerem essa complacência
conosco para que haja mais resultados satisfatórios.
Complacência não significa conivência ou
conformismo, mas caridade com nossos esforços.
Amor Incondicional - aprender o
auto-amor é o maior desafio de quem assume o compromisso da
reforma íntima, porque a tendência humana é
desgostar de sua história de evolução, quando toma
consciência do ponto em que se encontra ante os Estatutos
Universais da Lei Divina. Sem auto-amor a reforma íntima
reduz-se a "tortura íntima". Aprender a gostar de si mesmo,
independente do que fizemos no passado e do que queremos ser no futuro,
é estima a si próprio, um estado interior de
júbilo com nosso retorno lento, porém gradativo, para uma
identificação plena com o Pai.
Socialização - se
o interesse pessoal é o grande adversário de nosso
progresso, então a ação em grupos de
educação espiritual será excelente
medicação contra o personalismo e a vaidade. Destaquemos
assim o valor das tarefas doutrinárias regadas de afetividade e
siso moral. São treinamentos na aquisição de novos
impulsos.
Caridade - se socializar pode
imprimir novos impulsos e reflexões no terreno da vida mental, a
caridade é o "dínamo de sentimentos nobres" que
secundarão o processo socializador, levando-o ao nível de
abençoada escola do afeto e revitalização dos
ensinamentos espíritas.
*****
Conviveremos bem com os outros na
proporção em que estivermos convivendo bem conosco mesmo.
A adoção de uma ética de paz, no transcorrer da
metamorfose de nós próprios, será medida salutar
no alcance das metas que almejamos, ao tempo em que constituirá
garantia de bem-estar e motivação para a continuidade do
processo.
O exercício de negar a si mesmo não inclui o descuido ou
descrédito pessoal, confundindo a sombra que precisamos reciclar
com necessidades pessoais que não devemos desprezar, para o
bem-estar e equilíbrio. Cuidemos apenas de atrelar essas
necessidades de conformidade com os novos rumos que escolhemos. Fazemos
essa menção porque muitos corações queridos
do ideal supõem que reformar é negar ou mesmo castigar a
si, quando o objetivo do projeto de mudança espiritual é
tornar o homem mais feliz e integrado à sua divina tarefa
perante a vida.
Nos celeiros de luz dos repositórios do Evangelho, verificamos
um exemplo de rara beleza e oportunidade que servirá como
diretriz segura para a "despersonificação" dos servidores
do Cristo, na obra do amor: Ananias, o apóstolo chamado para
curar os olhos do Doutor de Tarso. Quando o Mestre o chama pelo nome, o
colaborador humilde, com prontidão e livre dos interesses
pessoais, responde sadiamente: "
Eis-me aqui Senhor!"[3]