Entrevista
com Hermínio C. Miranda, Folha Espírita, Brasil
FE: Quando e como foi que o senhor fez sua opção pelo
Espiritismo?
Herminio Miranda: Não fui levado ao Espiritismo
por crise existencial ou sofrimento, mas pela insatisfação
com os modelos religiosos à minha opção. Alguém
– mergulhado em transe anímico regressivo – me diria mais tarde que
eu não aceitava tais propostas porque, de alguma forma que não
me foi explicado, eu sabia que ali não estava a verdade que eu buscava.
Essa atitude de reserva e até de rejeição contribuiu,
acho eu, para retardar minha descoberta da realidade espiritual.
Um episódio irrelevante em minha vida desencadeou
o processo. Eu quis, no entanto, entrar pela porta da frente. Consultei,
para isso, um amigo de minha inteira confiança e ele me indicou com
primeira leitura os livros da Codificação. Acrescentou os nomes
de Gabriel Delanne e de Léon Dénis e me disse, como que proféticamente:
“Daí em diante, você irá sozinho”.
A surpresa começou com O Livro dos Espíritos.
Inexplicavelmente, eu tinha a impressão de haver lido aquele livro
antes, mas onde, quando? Antecipava na mente o conteúdo de numerosas
respostas . Anos depois, ficaria sabendo que outras pessoas viveram experiência
semelhante, entre elas, o respeitável e amado dr. Bezerra de Menezes.
FE: Desde quando o senhor escreve sobre o Espiritismo?
Herminio Miranda: Comecei a escrever regularmente
para o “Reformador e, em seguida, para outras publicações
doutrinárias. Permaneci como colaborador assíduo do órgão
oficial da FEB até 1980. Meus textos eram assinados nessa primeira
fase, com as iniciais HCM. Posteriormente, o amigo dr. Wantuil de Freitas,
presidente da FEB, me pediu que arranjasse um pseudônimo para evitar
que dois ou mais artigos saíssem com o mesmo nome em um só
número da revista. Foi assim que “nasceu” “João Marcus”.
A partir de 1976 começaram a sair os livros.
Diálogo com as sombras foi o primeiro. Para alegria minha,
foi bem recebido
FE: O senhor tem hoje quase 40 livros publicados. Como analisa sua
obra?
Herminio Miranda: Costumo dizer que boa parte
de meus livros é voltada para o meio espírita. Diálogo
com as sombras, Diversidade dos Carismas, bem como a série
sob o título genérico Histórias que os espíritos
contaram” são exemplos desse tipo de livro que dificilmente leitor
e leitora não-espírita tomariam para ler. Sempre achei,
contudo, de meu dever escrever livros que, sem excluir o leitor espírita,
pudessem interessar também o leitor não-espírita. Estão
nesse caso, A memória e o tempo, Alquimia da Mente, Autismo –
uma leitura espiritual, Nossos filhos são espíritos, Condomínio
espiritual e As mil faces da realidade espiritual. Parece que
o plano deu certo, pois essas obras atendem a dois objetivos: o de mandar
nosso recado para além das fronteiras espíritas e, ao mesmo
tempo, abordar assuntos não especificamente espírita com enfoque
doutrinário, sem contudo, fazer pregação ou com intuito
meramente arregimentador. Na minha opinião, a gente deve ir ao Espiritismo
se e quando quiser e por suas próprias pernas, ou seja, sem ser “arrastado”.
FE: O senhor tem idéia de quantos exemplares de seus livros
foram vendidos até agora?
Herminio Miranda: A repórter de uma grande
revista semanal brasileira me fez, há tempos, essa mesma pergunta
e muito se admirou por não ter eu condições de respondê-la.
Continuo sem saber. Cheguei a tentar, mas não obtive a informação
desejada. A razão disso está, em parte, no fato de que os direitos
autorais da grande maioria de meus livros são doados a diversas instituições,
como à FEB, ao Lar Emmanuel, do Correio Fraterno do ABC, a OCaminho
da Redenção (Divaldo), ao Centro Espírita “Amantes
da Pobreza, de “O clarim, ao Centro Espírita Léon Denis. Com
os rendimentos auferidos pelos livros publicados pela Lachâtre mantemos
nosso próprio serviço social numa favela do Rio de Janeiro.
FE: E quais os de sua preferência?
Herminio Miranda: Creio ser difícil para
qualquer autor dizer de que livro ou livros gosta mais. É como perguntar
a um pai ou mãe, qual ou quais os filhos e filhas de suas preferências.
Penso que a gente gosta de todos por motivos diferentes. Tanto quanto é
possível considerar minha obra com um mínimo de objetividade
e isenção, gosto de Nossos filhos são espíritos,
pela surpreendente aceitação que encontrou dentro e fora do
movimento espírita, o que também aconteceu com Autismo
– uma leitura espiritual. Livros como Cristianismo – a mensagem
esquecida, As marcas do Cristo, O evangelho gnóstico de Tomé,
Os cátaros e a heresia católica, pela forte ligação
emocional que tenho com a temática do cristianismo primitivo. Sobre
as explorações intelectuais em território fronteiriço
com o do Espiritismo, citaria A memória e o tempo, Alquimia da
Mente e, novamente, por motivação diferente da anterior,
Autismo – uma leitura espiritual.
Como se vê, isto não é propriamente
uma lista de preferências, mas uma análise de cada grupo de
livros, classificados por assuntos de minha preferência. Sobre a qualidade
e o conteúdo dos livros, no entanto, prefiro que fale o público
leitor.
FE: Além de seus próprios livros, o senhor tem feito
algumas traduções. Qual o critério adotado na seleção
das obras traduzidas?
Herminio Miranda: Tenho dito que prefiro escrever
meus próprios livros do que traduzir os alheios. É verdade,
mas, às vezes, me vejo envolvido numa tradução motivado
por fatores que diria imponderáveis, circunstanciais ou subjetivos.
Não sei definir os critérios que me levaram a esse envolvimento.
Cada caso é um caso.
FE: O que pensa o senhor do Espiritismo na sua interação
com o mundo contemporâneo?
Herminio Miranda: Prefiro reformular a pergunta:
O que se pode dizer acerca da interação da realidade espiritual
com o mundo contemporâneo? Isso porque, no meu entender, não
há uma rejeição ou indiferença em relação
ao Espiritismo especificamente, mas à realidade que a Doutrina dos
Espíritos ordenou e colocou com simplicidade e elegância. O
Espiritismo continua sendo um movimento minoritário, até mesmo
no Brasil, justamente considerado o país mais espírita do mundo.
Como se percebe, a massa maior das pessoas ainda prefere uma das numerosas
religiões institucionalizadas e tradicionais. Ou a aparente liberdade
que proporcionaria a descrença, que não tem compromisso com
coisa alguma senão com a própria negação.
O que, no fundo, e também uma crença (na descrença).
FE: O senhor tem algum projeto literário em andamento?
Herminio Miranda: Acho que projetos o escritor
sempre os tem. Eu também; talvez mais do que deveria ou poderia ter.
No momento, traduzo The sorry tale, discutido livro mediúnico
da autora espiritual que se identificou como Patience Worth, ao escrevê-lo
através da médium americana conhecida como Sra. Curran, a
partir de 1918. Além de ser um fenômeno literário, a
história se passa no tempo do Cristo, da noite em que ele nasceu
até o dia em que foi crucificado. É espantoso o conhecimento
que a autora espiritual revela da época: a geopolítica, os
costumes, a sociologia, a religião, a história e tudo o mais.
O tratamenteo respeitoso e amoroso que ela dá à figura de
Jesus é comovente. O livro é considerado um fenômeno
exatamente por esse grau de erudição histórica e pelo
fato de ter sido escrito num inglês um tanto arcaico, o elizabetano
do século 17, que faz lembrar Shakespeare e, por isso mesmo, um desafio
para o tradutor. A entidade justifica essa lignuagem arcaica exatamente para
provar que a obra não era da médium, uma jovem senhora dotada
de escassos conhecimentos.
FE: Como o senhor escolhe os temas que desenvolve
em seus livros, considerando-se a variedade dos assuntos neles abordados?
Herminio Miranda: Outra pergunta para a qual
não tenho resposta objetiva. Às vezes (Ou sempre?) me fica
a impressão de que não fui eu que escolhi os temas; eles é
que me escolheram.
FE: Seu livro mais recente – Os cátaros
e a heresia católica – aborda uma doutrina medieval bastante
parecida com o Espiritismo. Diga-nos algo sobre isso.
Herminio Miranda: O estudo sobre os cátaros
esteve em minha agenda cerca de 25 anos. Até que chegou o momento
em que a própria obra “entendeu” que chegara a hora de ser escrita.
Em parte, porque o tema exigia extensas e aprofundadas pesquisas na historiografia
especializada francesa. Além disso, procurei sempre obedecer nos
meus estudos uma escala de prioridades.
Não há dúvida de que o catarismo
foi um dos mais convincentes precursores do Espiritismo. Antes dele, o mais
promissor e bem articulado foi o movimento gnóstico. A inteligente
doutrina cátara foi elaborada a partir do Evangelho de João,
de Atos dos Apóstolos e das Epístolas, principalmente as de
Paulo. Tive algumas surpresas como a de encontrar referências ao Consolador,
que, com tanto relevo figura na Doutrina dos Espíritos. E mais: reencarnação,
comunicabilidade entre as duas faces da vida, o despojamento dos cultos,
sem rituais e sem sacramentos a não ser o do “consolamentum”. Seu propósito
era o de um retorno à pureza original do cristianismo. E por isso,
morreram nas fogueiras da Inquisição.
FE: O senhor tem obras não-espíritas publicadas?
Herminio Miranda: No início de minha atividade
literária, na distante mocidade, escrevi alguma ficção.
Nada de que me possa orgulhar, ainda que tenha sido premiado em concursos
literários e ter tido acesso a importantes publicações
brasileiras. Um desses escritos mereceu crítica bastante lisonjeira
de significativos escritores como Eloy Pontes (O Globo), Monteiro Lobato
e o temido e respeitado Agripino Griecco (estes dois em cartas ao autor).
Logo compreendi, contudo, que meu caminho não passava por ali, embora
o instrumento de trabalho – a palavra escrita – fosse o mesmo.
FE: Sabe-se de sua limitada atividade como orador,
expositor, palestrante ou conferencista. Por que isso?
Herminio Miranda: Considero-me orador medíocre.
E nem me esforcei em desenvolver esse improvável talento, por duas
razões: Primeira – sempre sonhei e desejei tornar-me escritor. Sinto-me
à vontade com as letras. Segundo – que, no meu entender, não
faltam bons oradores, expositores e conferencistas no meio espírita.
Eu nada teria a acrescentar ao excelente trabalho que eles e elas têm
feito nesse sentido.
FE: Como tem sido sua atividade em grupos mediúnicos?
Herminio Miranda: Durante quase 40 anos participei
de trabalhos mediúnicos em pequenos grupos. A parte mais importante
de minha obra surgiu da experiência adquirida nessa tarefa. Sou grato
aos amigos espirituais que guiaram meus passos nessa nobre e difícil
atividade, bem como aos companheiros encarnados – médiuns e
demais participantes – e às numerosas entidades com as quais dialogamos
no correr de todo esse tempo. Costumo dizer com toda sinceridade e convicção
que muito mais aprendi com os chamados “obsessores” do que lhes ensinei,
se é que o fiz.
FE: Dispomos hoje de computadores, Internet, e-mail
e outras tecnologias destinadas a facilitar a pesquisa. De que forma o senhor
deu conta de seu trabalho sem o aparato de hoje?
Herminio Miranda: O computador me tem sido valioso
instrumento de trabalho. Não tanto nas pesquisas, mas na tarefa mesma
de escrever. No tempo da falecida máquina de escrever, os textos
eram penosamente datilografados, corrigidos à mão ou na própria
máquina e posteriormente passados a limpo, duas ou três vezes.
Não uso muito a Internet para pesquisa, a não ser quando
se torna necessária alguma informação adicional especializada.
Ou quando à cata de livros. Isso porque, no meu entender, nada substitui
o livro como objeto de estudo, consulta e citação. Obras como
as que escrevi sobre o autismo, por exemplo, ou sobre os cátaros ou
Alquimia da mente, exigiram preparo maior que só uma boa bibliografia
em várias línguas poderia suprir. Em suma, por mais que os
entendidos da informátrica desaprovem, o computador é, para
mim, uma excelente e sofisticada máquina de escrever.
FE: Qual deve ser a postura espírita diante da antiga dicotomia
e até confronto entre religião e ciência?
Herminio Miranda: De serenidade e confiança.
Não há o que temer. Ao lado de cientistas que têm procurado
minimizar ou até demolir aspectos fundamentais da realidade espiritual,
temos também, outros tantos que produziram e continuam a produzir
impressionante volume de trabalhos científicos que demonstram a validade
do modelo adotado pela Doutrina dos Espíritos. Dizem nossos amigos
advogados, que o ônus da prova cabe a quem acusa. Que se prove, então,
que essa realidade é uma balela ou uma fantasia. Kardec teve a corajosa
serenidade de ensinar que a Doutrina teria de estar preparada até
para mudar naquilo que fosse demonstrado estar em erro. O que não
aconteceu em quase século e meio. Deixou igualmente claro que o Espiritismo
é uma doutrina evolutiva e, portanto, aberta e atenta a todos os ramos
do conhecimento. Ou seja, não deve deixar-se congelar dentro de um
rígido modelo ou procedimento que o isole do que se passa “lá
fora” de seu território ideológico.
FE: Assuntos como clonagem, que vêm ganhando espaço
na mídia, devem ser tratados pelos espíritas?
Herminio Miranda: Não tenho dúvidas
de que a temática da clonagem nos interessa para estudo e tomada
de posição, mesmo porque perguntas sobre esse fenômeno
estão sendo dirigidas a nós. “O que você acha disso?”
– perguntam-nos.
Em artigo intitulado “Xerox de gente” (“Reformador”,
julho de 1980) cuidei do assunto, bem como, em outras oportunidades, da
criogenia e do transplante. Este, por exemplo, foi tema proposto por Deolindo
Amorim, em estudo, do qual participei, no Instituto de Cultura Espírita.
Antes disso, em dois artigos intitulados “O homem artificial”,
publicados no antigo “Diário de Notícias”, do Rio, entendia
eu o seguinte, em conclusão “...o que se chama um tanto pomposamente
de criação do homem em laboratório, se reduz, a uma
análise fria do problema, à criação de condições
materiais à atuação de um espírito reencarnante.”
(Ver De Kennedy ao homem artificial, de Luciano dos Anjos e meu,
FEB 1975, p. 285).
O problema, portanto, situa-se no açodamento
irresponsável de interferir nos mecanismos naturais testados, aprovados
e consolidados ao longo dos bilênios. Irresponsável porque não
estão sendo levados em conta os aspectos éticos necessariamente
envolvidos em tais pesquisas. Pensa-se, por exemplo, em criar com a clonagem,
um “estoque” de “peças de sobressalentes” destinadas a repor as que
se desgastarem pelo uso e abuso praticados no corpo da pessoa que forneceu
o material genético.
A técnica de congelar cadáveres – criogenia
– parte do pressuposto de que a ciência venha a desenvolver no futuro,
procedimentos e medicamentos capazes de curar as mazelas de que morreram
as pessoas. E os espíritos? “Onde” ficam? Sob que condições?
Até quando? Disso, ninguém cuida, pois a entidade espiritual
acoplada àquele corpo é totalmente ignorada. Por ignorância
mesmo, aquela que não sabe e não quer saber, por mais cultos
que sejam os que realizam tais experimentações.
Sobre esse tema, escrevi, ainda, há cerca de
30 anos – não tenho, no momento, como precisar a data – um artigo
intitulado “Uma ética para a genética”—uma espécie de
pressentimento sobre o que estamos agora testemunhando.
Em resumo: os espíritas devem, sim, acompanhar
a movimentação de idéias, fatos, estudos e pesquisas,
no mínimo para se informarem do que se passa e para que continuem
confiando nas estruturas doutrinárias que adotaram.
FE: Gostaríamos que falasse sobre Chico Xavier e seu papel no
contexto espírita.
Herminio Miranda: Não há muito
que dizer. Chico é uma unanimidade. Portou-se com bravura e digna
humildade. Anulou-se como pessoa humana, para que por ele falassem seus numerosos
amigos espirituais. Não há dúvida de que ampliou os
horizontes desvelados pela Doutrina dos Espíritos, sem por em questionamento
nenhum de seus princípios básicos; pelo contrário, os
confirmou, sempre olhando para frente. O trabalho que nos chegou através
dele demonstra que se pode expandir os horizontes da Doutrina dos Espíritos
sem a mutilar.
FE: Que acha o senhor do movimento espírita brasileiro? Vai
bem?
Herminio Miranda: Não me considero com
autoridade suficiente para uma avaliação do movimento espírita.
Por contingências profissionais, não me foi possível
participar dele como o desejaria, mas não apenas por isso. Tive de
fazer uma opção e toda opção tem certo componente
limitador, porque exclui outras. Minha prioridade era escrever. Isso tem
sido uma espécie de compulsão, por ser, creio eu, a principal
tarefa que me teria sido confiada ao me reencarnar. E para escrever, você
precisa ler, ler muito, estudar, pesquisar, meditar, organizar suas idéias
e expô-las de modo consistente. Não me teria sido possível
fazer tudo isso em adição ao intenso trabalho profissional
e às tarefas que, porventura, me fossem confiadas no movimento.
FE: Os princípios básicos da Doutrina
Espírita já eram conhecidos na Antiguidade. Quais as civilizações
que mais contribuíram para a formação desse patrimônio
cultural?
Herminio Miranda: A pergunta é muito ampla
para as limitações de uma simples entrevista. É certo,
porém, que os fenômenos de que se ocupa a doutrina são
tão antigos quanto o ser humano. O aspecto que me parece mais relevante,
neste caso, é o de que a realidade espiritual sobre a qual
se assenta a Doutrina dos Espíritos já estava contida nos
ensinamentos de Jesus e foi ele próprio que dirigiu a equipe que
trabalhou com Kardec.
FE: Como o senhor considera o papel de Allan Kardec na elaboração
dos livros básicos da Codificação?
Herminio Miranda: Seria ocioso repetir o que
já sabemos. O papel dele foi fundamental na elaboração
dos livros básicos. Sua percepção da relevância
do que estava acontecendo com as mesas girantes, sua capacidade para ordenar
todo o material que lhe foi entregue, digamos, em estado bruto, em simples
cadernos de anotações e a sensibilidade para formular suas
perguntas dentro de um esquema racional e seqüencial, evidenciam o acerto
de sua escolha para delicada tarefa.
FE: Fala-se e se escreve muito no meio espírita
sobre os três aspectos da Doutrina dos Espíritos. Qual a sua
posição nessa questão?
Herminio Miranda: Não me sinto atraído
por debates ou polêmicas, como o que às vezes se armam em torno
de questões como essa. Está claro, para mim, que o Espiritismo
tem sua vertente filosófica, a científica e a religiosa. Ao
falar sobre isso, tenho em mente Religião com maiúscula; com
todo o respeito devido, não me refiro às várias denominações
cristãs contemporâneas. Mesmo porque o Cristo não fundou
religião alguma – ele se limitou a pregar e exemplificar uma doutrina
de comportamento, ou seja, como deve o ser humano portar-se perante o mundo,
a vida, seus semelhantes e, em última análise, diante de si
mesmo e da divindade. Ao que sabemos, jamais o Cristo cogitou de saber se
sua doutrina devia ou não ser caracterizada como religião.
E, no entanto, é religião, no seu mais puro e amplo sentido,
de vez que cuida de nossa relação com as leis divinas. Minha
opção prioritária, por assim entender, é pelo
aspecto religioso do Espiritismo, sem, contudo, ignorar ou minimizar os demais.
Nada tenho e nem poderia ter, contra os que pensam de modo diferente. Não
vejo como nem por que disputar coisas como essa. Tenho eu de desprezar, combater,
hostilizar, odiar e até eliminar aquele que não pensa exatamente
como eu?
Se você prefere cuidar do vetor científico
ou do filosófico, tudo bem.
Solicitado, certa ocasião, a um pronunciamento
dessa natureza, entreguei pessoalmente ao eminente e saudoso companheiro
dr. Freitas Nobre, um pequeno texto sob o título “Problema inexistente”,
que ele mandou publicar em “Folha Espírita”. Por que e para quê
todo esse debate? Começa que a posição a ser assumida
ante o problema depende da conceituação preliminar do que
se entende por religião. De que tipo de religião estaríamos
falando?
FE: Como o senhor situa o pensamento do Cristo no
contexto da Doutrina Espírita?
Herminio Miranda: Kardec sabia muito bem o que
fazia ao adotar a moral do Cristo. Afinal de contas e, ainda repercutindo
a temática da pergunta anterior, o Espiritismo nos pede mais, em
termos de comportamento e reforma íntima, do que a ciência
e a filosofia. Há quem me considere místico, mas o rótulo
não me incomoda; ao contrário, acho-o honroso e o aceito assumidadamente.
Não consigo imaginar minha vida – e a vida, em geral – sem os ensinamentos
do Cristo. Como sou um obstinado questionador, tenho, pelo menos, duas perguntas
a formular: “Que é ser místico?” E, antes dessa: “O que é
misticismo?” Um amigo meu, muito querido, costumava dizer-me isso, naturalmente,
sem a mínima conotação crítica, como quem apenas
enuncia um fato. Regressou antes de mim ao mundo espiritual. Passado algum
tempo, manifestou-se em nosso grupo mediúnico e entre outras coisas,
me disse: “Você é que estava certo.”
FE: Qual é a sua formação profissional?
Herminio Miranda: Minha formação
profissional é em Ciências Contábeis, função
que exerci na Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, a
partir de 1948, em Nova York (entre 1950 e o final de 1954) e, posteriormente,
no Rio de Janeiro, de 1957 a 1980, quando me aposentei. Devo acrescentar
que no decorrer dos últimos 22 anos, estive sempre no exercício
de cargos executivos no primeiro escalão da empresa ou no segundo.
FE: Deixamo-lo à vontade para algo mais que queira acrescentar.
Herminio Miranda: Certa vez fui convidado por
uma freira, amiga da família, para um encontro com seus alunos de
teologia numa universidade brasileira. No dia e hora marcados, lá
estava eu. Ela é doutora em teologia e sabia, naturalmente, de minhas
convicções, e foi por isso mesmo que me convidou, concedendo-me
oportunidade de verificar o quanto sua mente é arejada e despreconceituosa.
Perguntei-lhe sobre o que ela desejava que eu falasse. Ela propôs dois
pontos: a reencarnação e como o Espiritismo considerava a figura
de Jesus. Dito isso, foi sentar-se modestamente entre seus alunos e, como
eles e elas, formulou várias perguntas. Passamos ali, umas duas horas
numa conversa fraterna, animada e desarmada.
Digo que ela escolheu bem os temas, porque, na minha
maneira de ver, a reencarnação é o cimento que mantém
os diversos aspectos da realidade espiritual consolidados num só
bloco. Uma vez admitida a reencarnação, tudo o mais se encaixa
no seu lugar com precisão milimétrica. Isso porque, sendo como
é uma realidade por si mesma, uma lei natural e não objeto
de crença ou de fé, a reencarnação pressupõe
existência, preexistência e sobrevivência do ser à
morte corporal, bem como a lei de causa e efeito, que regulamenta nossas
responsabilidades perante a vida. Mais: a reencarnação exclui
do modelo dito religioso, qualquer possibilidade ou necessidade de céu,
inferno ou purgatório como “locais” onde se gozam as benesses da vida
póstuma ou se sofrem as conseqüências de erros e equívocos
cometidos. Do ponto de vista da teologia dita cristã contemporânea,
portanto, a reencarnação é uma doutrina subversiva,
no sentido de que desmonta todo um sistema teórico de idéias
e conceitos tidos por irremovíveis.
Quanto ao Cristo, não há o que discutir,
é a mais elevada entidade que passou pela terra.
Acho que a ilustrada irmã gostou da minha fala,
dado que algum tempo depois, me convidou novamente, desta vez para falar
a um grupo de sacerdotes católicos já ordenados e seminaristas
em final de curso. Que também foi uma conversa amena, fraterna e
franca.